Voltar para Casa e Ouvir: “Quero o Divórcio” — Quando a Vida Me Obriga a Recomeçar

— Quero o divórcio, Maria. Não dá mais.

As palavras do António caíram como um trovão no meio da sala. O cheiro do café ainda pairava no ar, misturado com o perfume das flores que eu tinha acabado de pôr na mesa. Fiquei ali, de pé, com a chávena a tremer-me nas mãos, incapaz de responder. O relógio da parede marcava seis e meia da tarde, mas para mim o tempo parou naquele instante.

— O quê? — perguntei, a voz quase sumida.

Ele não me olhou nos olhos. Fixava o chão, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. — Não aguento mais esta vida. Preciso de sair daqui, preciso de ser feliz.

Senti o chão fugir-me dos pés. Dezasseis anos de casamento, duas filhas, uma casa construída com sacrifício… Tudo parecia desmoronar-se num segundo. Lembrei-me das palavras da minha mãe, ditas há muitos anos, numa noite em que chorei por causa de uma discussão tola: “Maria, nunca te esqueças de quem és. Mesmo quando o mundo te virar as costas, lembra-te que és filha da Teresa e do Joaquim. Tens sangue forte nas veias.”

Mas naquele momento, eu não era forte. Era só uma mulher perdida, traída por quem mais confiava.

— Há outra pessoa? — perguntei, tentando controlar as lágrimas.

O António hesitou. O silêncio dele foi resposta suficiente.

— Quem é? — insisti, já com a voz embargada.

— Não interessa agora — respondeu ele, finalmente levantando os olhos. — Isto não é só sobre ela. É sobre mim. Sinto-me sufocado aqui.

A raiva começou a crescer dentro de mim, misturada com uma dor surda no peito. Sufocado? E eu? Eu que abdiquei da minha carreira para cuidar das meninas, que aguentei noites sem dormir quando ele ficou desempregado, que fechei os olhos às ausências dele porque acreditava que era só cansaço do trabalho?

— E as nossas filhas? Já pensaste nelas? — perguntei, quase a gritar.

Ele encolheu os ombros. — Elas vão perceber. São crescidas.

A Inês tinha doze anos e a Leonor dez. Crescidas? Como se alguma criança estivesse preparada para ver o pai sair de casa assim, sem aviso.

O António foi-se embora nessa noite. Deixou-me sozinha com as perguntas sem resposta e um silêncio pesado que parecia ocupar todos os cantos da casa. As meninas chegaram pouco depois da catequese e encontraram-me sentada no chão da cozinha, a chorar baixinho.

— Mãe? O que se passa? — perguntou a Inês, largando a mochila no chão.

Tentei recompor-me, mas as lágrimas não paravam de cair. Abracei-as com força, como se assim pudesse protegê-las de tudo aquilo.

— O pai… O pai vai sair de casa — consegui dizer, entre soluços.

A Leonor ficou em silêncio. A Inês começou a chorar também. Ficámos ali as três, abraçadas no chão frio da cozinha, enquanto o mundo desabava à nossa volta.

Os dias seguintes foram um tormento. A família do António ligava-me a perguntar o que se passava, como se eu tivesse culpa de alguma coisa. A minha sogra chegou a dizer:

— Maria, tu sempre foste tão fria com ele… Talvez devesses ter sido mais carinhosa.

Engoli em seco. Fria? Eu? Quantas vezes fui eu que lhe preparei o pequeno-almoço antes de ele sair para o trabalho? Quantas vezes fiquei acordada à espera dele quando chegava tarde?

A minha mãe veio logo no dia seguinte. Encontrou-me sentada na cama, ainda de pijama, com os olhos inchados de tanto chorar.

— Mariazinha… — disse ela, sentando-se ao meu lado e pegando-me na mão. — Eu sei que dói. Mas tu és mais forte do que pensas.

— Não sou nada, mãe… Sinto-me vazia. Não sei como vou conseguir seguir em frente.

Ela sorriu tristemente e passou-me a mão pelo cabelo.

— Lembras-te do que te disse quando eras pequena? Que as mulheres da nossa família nunca desistem? Agora é a tua vez de mostrar isso às tuas filhas.

As palavras dela ficaram comigo nos dias seguintes. Tentei agarrar-me a elas como quem se agarra a uma tábua no meio do naufrágio.

O António vinha buscar as meninas aos fins-de-semana. No início elas choravam sempre que ele chegava ou partia. A Inês recusava-se a falar com ele; a Leonor perguntava todos os dias quando é que o pai voltava para casa.

Uma noite, depois de as deitar, ouvi-as a conversar baixinho no quarto:

— Achas que foi por nossa causa? — perguntou a Leonor.

— Não digas disparates — respondeu a Inês, tentando ser forte. — A culpa é deles.

Fiquei à porta do quarto, com o coração apertado. Como é que se explica a duas crianças que às vezes os adultos também falham?

No trabalho comecei a faltar mais vezes. Não conseguia concentrar-me; tudo me lembrava dele. Os colegas olhavam para mim com pena ou curiosidade disfarçada. Uma vez ouvi a Carla comentar com outra colega:

— Dizem que ele já andava com aquela tipa do escritório há meses…

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como é possível alguém trair assim quem lhe deu tudo?

O tempo foi passando e fui aprendendo a viver sem ele. A casa parecia maior e mais fria; as noites eram longas e silenciosas. Mas aos poucos fui recuperando forças. Comecei a sair mais com as amigas; inscrevi-me num curso de costura na junta de freguesia; voltei a pintar como fazia antes de casar.

Um dia encontrei o António na rua com a tal mulher — uma loira magra e elegante, uns dez anos mais nova do que eu. Ele tentou evitar o meu olhar, mas eu mantive-me firme.

— Olá, António — disse eu, com um sorriso forçado.

Ele pareceu desconfortável. — Olá, Maria… Como estão as meninas?

— Estão bem. Crescem todos os dias — respondi, tentando não mostrar fraqueza.

A mulher olhou para mim com um ar superior e puxou-o pelo braço.

Quando cheguei a casa chorei tudo outra vez. Mas dessa vez foi diferente: chorei não por ele, mas por mim mesma — pela mulher que fui e pela mulher que estava a tentar voltar a ser.

A minha mãe continuava sempre presente:

— Mariazinha, não deixes que esta dor te defina. Tu és muito mais do que isto.

Comecei a acreditar nela. Um dia sentei-me à mesa com as meninas e disse-lhes:

— Sei que isto está a ser difícil para vocês… Mas prometo-vos uma coisa: vamos ficar bem. Somos uma família e vamos continuar juntas.

A Inês sorriu pela primeira vez em semanas e abraçou-me com força.

Os meses passaram e aprendi a viver sozinha. Aprendi a gostar do silêncio da casa; aprendi a rir outra vez; aprendi que não preciso de ninguém para ser feliz além de mim mesma e das minhas filhas.

Hoje olho para trás e vejo tudo o que passei como uma lição dura mas necessária. O António já não faz parte da minha vida; as meninas cresceram fortes e independentes; eu reencontrei-me comigo mesma.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem histórias como a minha em silêncio? Quantas se esquecem da sua força até serem obrigadas a recomeçar? Talvez seja essa a pergunta que devíamos fazer umas às outras: o que nos impede de sermos felizes por nós próprias?