Viver Para Mim: Entre o Amor de Mãe e o Esquecimento de Si Mesma
— Mãe, não podes simplesmente decidir isso agora! — gritou o Rui, com a voz embargada, enquanto eu segurava a mala junto à porta da cozinha.
O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma do pão quente, mas nada disso me confortava. O Rui olhava-me como se eu tivesse enlouquecido. Os meus netos, a Matilde e o Tiago, estavam sentados à mesa, olhos arregalados, sem perceberem bem o que se passava. A minha nora, a Carla, mantinha-se em silêncio, mas o olhar dela dizia tudo: desconfiança, talvez até algum alívio.
— Rui, por favor… — tentei manter a voz firme, mas senti as lágrimas a ameaçarem-me. — Preciso disto. Preciso de pensar em mim, só uma vez na vida.
Ele abanou a cabeça, frustrado. — Pensar em ti? E nós? E os miúdos? Sempre foste tu a segurar isto tudo!
E foi aí que percebi: sempre fui eu a segurar tudo. Desde que o António morreu — já lá vão quase vinte anos — nunca mais pensei em mim. O António era o meu grande amor, mas também o meu maior desafio. Trabalhava nas obras, chegava tarde e cansado, e eu ficava com tudo: casa, filho, contas, preocupações. Quando ele partiu de repente, num acidente na autoestrada de Cascais, senti que o chão me fugia dos pés. Mas não tive tempo para chorar. O Rui tinha 14 anos e precisava de mim.
A partir desse dia, deixei de ser a Maria só para ser a mãe do Rui. Trabalhei como empregada de limpeza em três casas diferentes. Levantava-me às cinco da manhã e só parava quando já era noite cerrada. Nunca reclamei. O Rui precisava de estudar, precisava de roupa nova, precisava de tudo aquilo que eu nunca tive.
Os anos passaram num instante. O Rui cresceu, foi para a universidade — orgulho da família! — e conheceu a Carla. Casaram-se cedo demais, na minha opinião, mas quem era eu para opinar? Quando nasceu a Matilde, senti-me renascer. Era como se todo o esforço tivesse valido a pena. Depois veio o Tiago e a casa voltou a encher-se de risos e brinquedos espalhados pelo chão.
Mas com o tempo percebi que não era só alegria que enchia a casa. Era também cansaço, ressentimento e uma solidão silenciosa que se instalava nos cantos da sala quando todos dormiam. Eu era sempre a primeira a acordar e a última a deitar-me. Fazia os almoços para todos, ajudava nos trabalhos de casa dos netos, limpava, cozinhava… E ninguém parecia reparar.
Uma noite, ouvi sem querer uma conversa entre o Rui e a Carla:
— A tua mãe está sempre em cima de nós… — sussurrou ela.
— Ela só quer ajudar… — respondeu ele.
— Pois, mas às vezes sinto que não temos espaço para sermos uma família só nossa.
Fiquei ali parada no corredor, com um nó na garganta. Será que estava mesmo a mais? Será que toda a minha dedicação era vista como um fardo?
No dia seguinte tentei afastar-me um pouco. Fui ao café da Dona Emília pela primeira vez em anos. Sentei-me sozinha com um galão e um pastel de nata. Olhei pela janela e vi pessoas da minha idade a rir, a conversar animadamente sobre viagens e passeios. Senti inveja. Eu nunca viajei. Nunca fui sequer ao Algarve.
Quando voltei para casa nesse dia, ninguém notou que tinha estado fora mais tempo do que o habitual. Ninguém perguntou onde tinha ido ou se estava bem.
As semanas passaram e comecei a sentir um vazio cada vez maior dentro de mim. Comecei a perguntar-me: quem sou eu além de mãe e avó? O que é que eu gosto mesmo de fazer? O que é que me faz feliz?
Foi então que encontrei uma caixa antiga no fundo do armário do meu quarto. Lá dentro estavam cartas que escrevi ao António quando namorávamos, fotografias amarelecidas das festas populares em Sintra, bilhetes de cinema… E um caderno onde eu escrevia poemas quando era jovem.
Li um dos poemas em voz alta:
“Quero ser rio,
Quero correr,
Não quero ser margem,
Quero viver.”
Chorei como há muito tempo não chorava. Senti saudades da Maria que sonhava ser professora de português, da Maria que adorava dançar nas festas da aldeia, da Maria que ria alto sem medo do mundo ouvir.
Naquela noite tomei uma decisão: ia viver para mim. Nem que fosse só por uns dias.
No dia seguinte anunciei à família:
— Vou passar uns dias fora. Preciso de tempo para mim.
O Rui ficou em choque. A Carla tentou disfarçar um sorriso nervoso. Os netos perguntaram se eu ia trazer-lhes presentes.
Arrumei algumas roupas na mala e apanhei o autocarro para Nazaré. Nunca tinha visto o mar assim tão perto. Fiquei numa pensão simples e passei horas sentada na areia fria a olhar as ondas rebentarem com força nas rochas.
Conheci a Dona Lurdes no pequeno-almoço do segundo dia. Ela era viúva como eu e viajava sozinha há anos.
— Sabe, Maria — disse ela — há muito tempo percebi que ninguém vai viver por nós. Ou vivemos agora ou morremos sem ter vivido.
Essas palavras ficaram comigo durante toda a viagem.
Quando voltei para casa uma semana depois, senti-me diferente. Mais leve, mais dona de mim mesma. Mas também sabia que nada seria igual.
O Rui estava frio comigo.
— Não percebo porque fizeste isto — disse ele num tom magoado.
— Porque precisava de me encontrar — respondi baixinho.
— E nós? Não pensaste em nós?
— Passei a vida toda a pensar em vocês… Só queria pensar em mim por uns dias.
A Carla foi mais compreensiva:
— Maria, todos precisamos do nosso espaço… Talvez tenha sido bom para todos nós.
Mas os netos estavam confusos e distantes durante algum tempo. Senti culpa e alívio ao mesmo tempo.
Os meses passaram e comecei a fazer pequenas coisas só para mim: inscrevi-me num curso de pintura na Junta de Freguesia; comecei a caminhar no parque todas as manhãs; fiz novas amizades no grupo sénior da paróquia.
A relação com o Rui nunca voltou ao que era antes. Ele nunca me perdoou totalmente por ter “abandonado” a família durante aquela semana. Mas eu aprendi finalmente a gostar da minha própria companhia.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito tudo diferente se soubesse o que sei agora? Talvez sim… Talvez não…
Mas uma coisa é certa: nunca é tarde para nos encontrarmos outra vez.
E vocês? Quantas vezes já se esqueceram de viver para vocês mesmos? Será possível recuperar o tempo perdido?