Vinte Anos de Mentiras: O Segredo do Meu Marido Caminhoneiro
— Dona Teresa? — A voz do outro lado da linha tremia, mas era firme. — É a esposa do senhor João?
O relógio marcava 7h30 da manhã. O cheiro do café fresco misturava-se ao aroma de pão quente que ainda trazia da padaria. Eu, Teresa, 58 anos, sentia o corpo moído da noite de trabalho, mas nada me preparou para aquela chamada.
— Sim, sou eu… Quem fala? — respondi, tentando afastar o sono dos olhos.
— Chamo-me Maria. Sou… sou esposa do João. Ele está no hospital, em Braga. Precisei ligar porque encontrei o seu número nos contactos dele. — O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.
O mundo parou. O João? O meu João? Esposa? Em Braga?
— Deve haver um engano — balbuciei, sentindo o coração disparar. — O João é meu marido há trinta anos.
Do outro lado, Maria chorava baixinho. — Eu também sou casada com ele há vinte anos. Temos dois filhos… — A voz dela quebrou-se.
A chávena caiu-me das mãos, espalhando café pela mesa e pelo chão. O som da porcelana a partir-se ecoou pelo silêncio da casa. Senti as pernas fraquejarem. Vinte anos? Dois filhos?
— Não pode ser… — sussurrei, mas sabia que era verdade. As viagens longas, as ausências prolongadas, as desculpas esfarrapadas… Tudo fazia sentido agora.
Desliguei o telefone sem saber como respirar. O João estava no hospital e eu não sabia se devia chorar por ele ou por mim. Sentei-me no chão da cozinha, rodeada de cacos e café derramado, e deixei as lágrimas correrem.
Horas depois, quando a minha filha Inês chegou para tomar o pequeno-almoço antes de ir para a universidade, encontrou-me ali mesmo.
— Mãe? O que aconteceu? — perguntou, ajoelhando-se ao meu lado.
Contei-lhe tudo entre soluços. Vi nos olhos dela o mesmo choque, a mesma dor. — Como é possível? Ele sempre foi tão presente… — murmurou Inês, mas eu sabia que não era verdade. Ele estava presente quando queria, quando lhe dava jeito.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. O João ligou-me do hospital, a voz cansada e envergonhada.
— Teresa… Perdoa-me. Não sei como explicar… — começou ele.
— Não expliques! — gritei-lhe. — Vinte anos de mentiras! Como foste capaz?
Ele chorava do outro lado da linha. Pela primeira vez em décadas, senti pena dele e ódio ao mesmo tempo.
A família inteira ficou em choque quando contei a verdade. A minha mãe recusou-se a acreditar. — O João? Nunca! Ele sempre foi tão trabalhador…
O meu irmão Miguel quis ir a Braga confrontá-lo. — Isto não fica assim! — berrou ele ao telefone.
Mas eu não queria vingança. Queria respostas.
Dias depois, Maria ligou-me novamente. Desta vez, falámos como duas mulheres destroçadas pelo mesmo homem.
— Ele sempre disse que trabalhava muito… Que precisava de viajar para sustentar a família — contou ela.
— E eu acreditava que era só trabalho — respondi, sentindo-me ridícula.
Descobrimos que ele passava semanas connosco e semanas com ela e os filhos em Braga. Tinha duas casas, duas vidas, dois mundos separados por mentiras e promessas vazias.
A minha filha recusou-se a falar com ele. O meu filho mais novo, Pedro, fechou-se no quarto durante dias. A vergonha abateu-se sobre nós como uma nuvem negra.
No trabalho, as colegas cochichavam quando eu passava. A notícia espalhou-se pela vila como fogo em palha seca. Senti-me exposta, humilhada.
Uma noite, sentei-me sozinha na sala escura e olhei para as fotografias na parede: casamentos, aniversários, férias na Nazaré… Tudo parecia uma farsa.
Quando o João saiu do hospital, tentou voltar para casa. Apareceu à porta com um ramo de flores murchas e olhos vermelhos.
— Teresa… Preciso falar contigo.
Olhei-o nos olhos pela primeira vez desde a descoberta.
— Não tens nada para me dizer que possa apagar isto tudo — respondi friamente.
Ele ajoelhou-se à minha frente.
— Eu amei-te sempre… Mas também amei a Maria. Não sei como aconteceu… Fui cobarde. Tive medo de perder tudo.
Ri-me amargamente.
— Perder tudo? Já perdeste! Perdeste-me a mim, aos teus filhos… E agora? Vais viver com ela?
Ele baixou a cabeça.
— Ela também não me quer ver…
O silêncio entre nós era pesado como chumbo. Finalmente, levantei-me e abri-lhe a porta.
— Sai da minha casa, João. Não voltes mais.
Ele saiu sem olhar para trás.
Os meses seguintes foram de reconstrução dolorosa. Tive de aprender a viver sozinha depois de trinta anos de casamento baseado numa mentira. Os meus filhos tentaram seguir em frente à sua maneira: Inês mergulhou nos estudos; Pedro começou a trabalhar mais horas para não pensar no pai.
A Maria ligava-me de vez em quando. Partilhávamos dores e dúvidas como duas irmãs de sofrimento.
— Achas que algum dia vamos conseguir perdoar? — perguntou ela numa dessas conversas tardias.
— Não sei… Talvez um dia consigamos viver sem esta dor — respondi-lhe.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente no espelho: mais forte, mais desconfiada, mas também mais livre. Descobri que sou capaz de sobreviver ao impossível.
Às vezes pergunto-me: quantas vidas cabem numa só mentira? E será possível reconstruir o coração depois de tanto engano?