Vinte Anos ao Lado da Minha Mãe: O Preço do Sacrifício
— Maria, trazes-me um copo de água? — ouvi a voz fraca da minha mãe vinda do quarto, enquanto eu tentava, pela terceira vez naquela manhã, terminar o café que já estava frio.
Levantei-me automaticamente, como quem respira sem pensar. O chão de madeira rangia sob os meus pés descalços. Entrei no quarto, onde a luz filtrada pelas cortinas amarelecidas desenhava sombras no rosto cansado da minha mãe. Ela olhou para mim com aqueles olhos que já não viam o mundo como antes, mas que ainda procuravam conforto na minha presença.
— Aqui está, mãe — disse, tentando sorrir. Ela sorriu de volta, um sorriso pequeno, quase imperceptível. Sentei-me na beira da cama e segurei-lhe a mão. O silêncio entre nós era pesado, mas familiar. Era assim há anos: eu e ela, presas uma à outra por fios invisíveis de necessidade e culpa.
Nunca planeei esta vida. Quando o meu pai morreu, eu tinha vinte e três anos e sonhos de ser professora em Lisboa. Mas a doença da minha mãe chegou como uma tempestade inesperada. O meu irmão, Rui, já vivia no Porto e vinha a casa uma vez por ano, sempre com pressa, sempre com desculpas.
— Maria, tu é que tens jeito para isto — dizia ele, quando eu lhe pedia ajuda. — Eu não aguento ver a mãe assim.
E assim fiquei. Os dias transformaram-se em semanas, depois em meses e anos. A casa tornou-se pequena, o mundo lá fora distante. Os meus amigos foram desaparecendo um a um; as mensagens tornaram-se raras, os convites cessaram. “A Maria não pode sair”, diziam. E era verdade.
Às vezes, à noite, sentava-me na varanda e olhava para as luzes da aldeia. Perguntava-me como seria a minha vida se tivesse tido coragem de partir. Mas depois ouvia o gemido da minha mãe e corria para dentro. O amor e o dever confundiam-se até eu já não saber onde começava um e terminava o outro.
A doença dela foi longa e cruel. Vi-a definhar aos poucos, perder a memória dos nomes das vizinhas, esquecer receitas que antes fazia de olhos fechados. Vi-a chorar de dor e de medo. E vi-me a mim própria envelhecer antes do tempo.
No último ano, as noites tornaram-se intermináveis. Ouvia-lhe a respiração irregular no escuro e rezava para que não sofresse mais. Quando finalmente partiu, senti um alívio misturado com uma culpa insuportável.
O funeral foi simples. O Rui apareceu de fato escuro e óculos de sol, abraçou-me com força e chorou lágrimas que me pareceram estranhas. Depois do enterro, sentámo-nos à mesa da cozinha com o advogado da família.
— A vossa mãe deixou um testamento — anunciou ele, com voz grave.
Olhei para o Rui; ele encolheu os ombros como quem não espera nada. Eu também não esperava nada — tudo o que queria era paz.
O advogado abriu o envelope e leu:
— “Deixo todos os meus bens ao meu filho Rui, por confiar que saberá honrar a nossa família.” —
Senti o chão fugir-me dos pés. Olhei para o Rui, que ficou tão surpreendido quanto eu.
— Isto deve ser engano — balbuciei. — Eu estive aqui todos estes anos! Eu cuidei dela!
O advogado limitou-se a encolher os ombros.
O Rui tentou consolar-me:
— Maria… eu não sabia…
Mas as palavras dele soaram vazias. Saí da sala sem olhar para trás.
Nos dias seguintes, vagueei pela casa como um fantasma. Cada objeto tinha uma história: a manta que lhe cobria as pernas nas tardes frias; o rádio antigo onde ouvíamos fados; as fotografias desbotadas na parede. Tudo agora pertencia ao Rui.
Os vizinhos vinham trazer bolos e palavras de consolo:
— Foste uma filha exemplar, Maria.
Mas eu sentia-me vazia. O telefone tocou uma vez — era o Rui:
— Maria, podemos falar?
— Não tenho nada para dizer — respondi antes de desligar.
Comecei a fazer as malas devagarinho. Não sabia para onde ir nem o que fazer com a minha vida agora que já não era “a filha que cuida”. Olhei-me ao espelho: cabelos grisalhos antes do tempo, rugas fundas ao redor dos olhos cansados.
Na última noite na casa da minha infância, sentei-me na varanda com uma chávena de chá quente entre as mãos trémulas. O silêncio era ensurdecedor. Senti falta do som da respiração da minha mãe — até disso sentia falta.
Perguntei-me se algum dia conseguiria perdoar-lhe esta última traição. Ou se conseguiria perdoar-me por ter deixado que toda a minha vida fosse definida pelo sacrifício.
Agora estou aqui, diante do desconhecido, com uma mala pequena e um coração pesado. Será possível recomeçar depois de perder tudo? Ou será que nunca tive nada para perder além de mim própria?
E vocês? Já sentiram que deram tudo por alguém… e no fim ficaram sem nada? O que fariam no meu lugar?