“Viemos para Celebrar, Mas Tu Não Abres a Porta!”
— Maria, abre lá a porta! — gritou o meu sogro, batendo com força, enquanto a chuva escorria pelo vidro da janela da sala. Eu estava parada no meio da cozinha, as mãos ainda molhadas de lavar o bacalhau, o coração a bater tão forte que quase abafava o som da campainha.
Olhei para o relógio: eram três da tarde. Ainda faltava uma hora para o jantar de Páscoa que eu tinha preparado — sozinha, como sempre. O António, meu marido, estava sentado no sofá, olhos colados à televisão, como se não ouvisse nada. Suspirei fundo e fui abrir a porta.
— Finalmente! — exclamou a minha sogra, Dona Lurdes, entrando sem sequer me olhar nos olhos. — Está um tempo horrível lá fora. Não podias ter aberto mais cedo?
Atrás dela vinham o meu cunhado Rui e a esposa dele, a Carla, com os dois filhos pequenos já a correrem pela casa como se fosse um parque infantil. O cheiro do assado misturava-se com o perfume forte da minha sogra e com o aroma húmido dos casacos molhados.
— Olá, Maria — disse Rui, sem entusiasmo. — O António está?
— Está na sala — respondi, tentando sorrir.
Fui buscar toalhas para os miúdos e voltei à cozinha. O meu telemóvel vibrava com mensagens do grupo da família: “Já chegámos!”, “O bolo está pronto?”, “Tens vinho verde?”. Senti-me engolida por uma onda de ansiedade.
Enquanto preparava as entradas, ouvi Dona Lurdes na sala:
— António, tu não ajudas a Maria? Ela está sempre sozinha na cozinha!
O António respondeu com um grunhido. Eu sabia que ele não ia mexer uma palha. Nunca mexia. Desde que casámos, as festas eram todas na nossa casa. No início até gostava: sentia-me adulta, anfitriã, parte da família. Mas com o tempo, tornou-se um fardo.
Lembrei-me do Natal passado. Passei três dias a cozinhar, a limpar e a sorrir para pessoas que só sabiam criticar: “O arroz está seco”, “O polvo está duro”, “A casa podia estar mais arrumada”. No fim da noite, recolhi os pratos sozinha enquanto todos riam na sala.
— Maria! — chamou Dona Lurdes da porta da cozinha. — O Rui não gosta de cebola na salada. E vê lá se não pões pimenta no arroz para os meninos.
Mordi o lábio para não responder. Senti as lágrimas a quererem saltar, mas engoli-as com um gole de vinho branco.
A Carla entrou atrás dela:
— Precisas de ajuda?
Olhei para ela com esperança, mas antes que pudesse responder, já estava no telemóvel a tirar selfies com os filhos.
Quando finalmente nos sentámos à mesa, tentei relaxar. Mas as conversas começaram logo:
— Então António, quando é que vocês têm filhos? Já não era tempo? — perguntou Rui, lançando-me um olhar de lado.
O António encolheu os ombros.
— A Maria é que não quer — disse ele, sem me olhar.
Senti o chão fugir-me dos pés. Como podia ele dizer aquilo? Já tínhamos falado tantas vezes sobre o assunto. Eu queria filhos, mas não naquele ambiente sufocante.
A Dona Lurdes suspirou alto:
— No meu tempo não era assim. As mulheres sabiam o seu lugar.
O jantar continuou entre silêncios constrangedores e risos forçados. Quando chegou a hora do bolo, os miúdos já tinham partido dois copos e sujado metade da sala.
Depois de todos saírem, sentei-me no chão da cozinha rodeada de pratos sujos e restos de comida. O António já estava na cama a ressonar.
Na manhã seguinte acordei com uma mensagem da minha mãe: “Correu tudo bem?”. Não tive coragem de responder.
Os meses passaram e cada festa era igual à anterior: eu a cozinhar sozinha, eles a criticar e o António ausente. Comecei a sentir-me invisível dentro da minha própria casa.
Um dia, depois de mais um almoço de domingo em que ninguém agradeceu ou ajudou a arrumar, sentei-me à mesa com o António.
— Não aguento mais — disse-lhe. — Sinto que esta casa não é minha. Que eu não sou mais do que uma empregada para a tua família.
Ele olhou para mim como se eu estivesse a falar noutra língua.
— Estás a exagerar. São só almoços em família.
Levantei-me e fui até à janela. Lá fora chovia outra vez. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
Na Páscoa seguinte decidi fazer diferente. Quando ouvi a campainha tocar às três da tarde, fiquei parada no meio da sala. O António olhou para mim:
— Não vais abrir?
Olhei-o nos olhos e disse:
— Hoje não vou abrir porta nenhuma. Hoje vou cuidar de mim.
A campainha tocou mais forte. Ouvi a voz da Dona Lurdes:
— Viemos para celebrar! Maria! Abre lá!
Mas eu fiquei sentada no sofá, abraçada às pernas, sentindo pela primeira vez em anos que tinha algum controlo sobre a minha vida.
O António levantou-se furioso:
— Vais fazer esta figura? Vais envergonhar-me?
Olhei para ele com uma calma estranha:
— Estou cansada de fingir que está tudo bem quando não está. Se quiseres abrir a porta, abre tu.
Ele hesitou por um segundo e depois foi abrir. Ouvi as vozes indignadas na entrada:
— Que falta de respeito! — gritou Dona Lurdes.
Levantei-me devagar e fui até à cozinha buscar um copo de água. Senti as pernas tremerem mas mantive-me firme.
A família entrou na sala e ficou tudo em silêncio ao ver-me ali parada sem avental, sem pratos na mesa, sem sorriso forçado.
— Hoje não há almoço — disse eu baixinho mas firme. — Hoje vou descansar.
O António ficou vermelho de raiva. A Dona Lurdes começou a chorar alto:
— Isto é uma vergonha! Depois do que fizemos por ti!
Mas eu já não ouvia nada. Sentei-me à mesa vazia e respirei fundo pela primeira vez em anos.
Eles foram embora pouco depois, indignados e ofendidos. O António saiu atrás deles sem dizer uma palavra.
Fiquei sozinha em casa naquela tarde chuvosa. Senti medo do futuro mas também um alívio imenso por finalmente ter dito basta.
Agora escrevo esta história sentada à mesma mesa onde tantas vezes chorei em silêncio. Pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem presas ao papel de agradar famílias que nunca estão satisfeitas? Quantas vezes sacrificamos a nossa felicidade pelo medo do julgamento alheio?
E vocês? Até onde iriam para proteger o vosso próprio bem-estar?