Viemos Celebrar, Mas Não Abres a Porta!

— Mariana, abre a porta! Sabemos que estás aí!

Ouvia a voz da minha sogra, Dona Lurdes, do outro lado da porta, misturada com o burburinho dos cunhados e das crianças. O Rui olhava para mim, sentado no sofá, com aquele ar de quem não quer problemas. O cheiro do bacalhau ainda pairava na cozinha, mas eu não tinha vontade de celebrar nada.

— Mariana, por favor… — insistiu o Rui, baixinho. — Eles só querem passar o feriado connosco.

Só querem? Desde que casei com o Rui, há três anos, não houve Natal, Páscoa, aniversário ou sequer um domingo em que não tivesse de receber a família dele. No início achei bonito: família unida, tradições portuguesas, mesa cheia. Mas rapidamente percebi que era sempre eu a cozinhar, eu a limpar, eu a sorrir para piadas que não entendia ou não achava graça.

— Não vou abrir — disse-lhe, sentindo as lágrimas a arder nos olhos. — Hoje não consigo.

O Rui levantou-se devagar. — Mariana… Eles vão ficar magoados.

— E eu? Eu não estou magoada? — rebati, finalmente deixando sair tudo o que me sufocava há meses. — Alguma vez te preocupaste comigo?

Ele ficou calado. Do outro lado da porta, ouviam-se risos e passos impacientes. A Dona Lurdes bateu outra vez.

— Mariana! Fizemos o esforço de vir de Setúbal! Não vais abrir?

Lembrei-me do último Natal: acordei às seis da manhã para preparar o peru e as rabanadas. A sogra criticou o sal do bacalhau, a cunhada reclamou do vinho, os miúdos correram pela casa deixando tudo de pernas para o ar. No fim, todos saíram sem agradecer. O Rui disse apenas: “É assim mesmo, são família.”

Mas eu estava cansada. Cansada de ser invisível. Cansada de ser apenas a mulher do Rui, a nora da Dona Lurdes, a cozinheira das festas.

— Mariana… — O Rui tentou tocar-me no braço, mas afastei-me.

— Não percebes? Eu não sou empregada deles! Não sou obrigada a sorrir enquanto me tratam como se fosse invisível!

Ele suspirou. — Eles são assim… Não fazem por mal.

— E tu? Tu fazes por mal ou simplesmente não te importas?

O silêncio dele foi mais doloroso do que qualquer palavra. Do outro lado da porta, ouvi finalmente a Dona Lurdes dizer:

— Se não queres abrir, diz! Não precisamos de ti para celebrar!

Senti um nó na garganta. Era sempre assim: se eu não cedesse, era eu a ingrata. A má da fita.

Lembrei-me da minha mãe, sozinha em Vila Real, a ligar-me todos os domingos para perguntar se estava tudo bem. Nunca vinha cá porque “não queria incomodar”. O Rui nunca sugeriu convidá-la. Para ele, só existia a família dele.

— Mariana… Por favor… — O Rui parecia pequeno naquele momento.

— Vai tu abrir — disse-lhe. — Vai tu receber a tua família. Hoje não vou fingir que está tudo bem.

Ele hesitou, mas acabou por ir ao corredor. Ouvi o som da chave na fechadura e os gritos de alegria dos sobrinhos ao entrarem. Fiquei na cozinha, sozinha, com as mãos trémulas e o coração apertado.

A sogra entrou logo atrás dele.

— Então e a Mariana? Está doente?

Ouvi o Rui inventar uma desculpa qualquer: “Está cansada do trabalho”. Senti raiva e alívio ao mesmo tempo. Raiva por ele nunca me defender; alívio por não ter de encarar aqueles sorrisos falsos.

A cunhada entrou na cozinha sem bater.

— Olha lá, Mariana… Vais ficar aí fechada? Viemos todos para celebrar!

Olhei-a nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— Hoje não consigo — respondi apenas.

Ela revirou os olhos e saiu, murmurando algo sobre “gente esquisita”.

Fiquei ali sentada à mesa da cozinha enquanto ouvia os risos e as conversas na sala. Senti-me uma estranha na minha própria casa.

Lembrei-me do dia em que conheci o Rui: ele era divertido, atencioso, fazia-me sentir especial. Mas depois do casamento tudo mudou. Ele tornou-se filho da Dona Lurdes antes de ser meu marido. E eu? Passei a ser só mais uma peça no teatro familiar deles.

As horas passaram devagar. Ouvi pratos a baterem, copos a tilintarem, gargalhadas altas. Ninguém veio perguntar se eu precisava de alguma coisa. Ninguém se importou.

Quando finalmente saíram — já noite cerrada — o Rui entrou na cozinha com ar cansado.

— Podias ter feito um esforço…

Olhei para ele com lágrimas nos olhos.

— E tu? Quando é que fazes um esforço por mim?

Ele ficou calado outra vez. Senti que algo se partiu entre nós naquele momento.

Naquela noite dormi no sofá. O Rui nem tentou convencer-me a ir para o quarto.

No dia seguinte acordei com uma mensagem da minha mãe: “Bom dia filha! Espero que tenhas tido um bom feriado.” Senti uma dor aguda no peito. Peguei no telefone e liguei-lhe.

— Mãe… Posso ir passar uns dias contigo?

Ela ficou tão feliz que quase chorou ao telefone.

Fiz as malas sem dizer nada ao Rui. Quando ele acordou já eu estava pronta para sair.

— Vais fugir? — perguntou ele, com voz amarga.

— Vou cuidar de mim — respondi apenas.

Saí de casa sem olhar para trás.

Na viagem até Vila Real pensei em tudo o que tinha aguentado nos últimos anos: as festas forçadas, os silêncios engolidos, as lágrimas escondidas na casa de banho depois de cada reunião familiar. Pensei em como me tinha perdido de mim mesma para agradar aos outros.

Quando cheguei à casa da minha mãe senti-me finalmente em paz. Ela preparou-me um chá e sentou-se ao meu lado no sofá.

— Filha… Porque nunca disseste nada?

Chorei tudo o que tinha guardado dentro de mim durante tanto tempo.

Nos dias seguintes redescobri quem era antes do casamento: uma mulher cheia de sonhos e vontade de viver. Comecei a pensar no futuro — um futuro onde eu fosse protagonista da minha própria vida e não figurante na história dos outros.

O Rui ligou várias vezes mas não atendi. Precisava de tempo para mim.

Agora escrevo-vos daqui, da varanda da minha mãe, olhando para as montanhas verdes de Vila Real e sentindo finalmente que respiro fundo sem medo do próximo feriado ou da próxima visita inesperada.

Pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem presas às expectativas das famílias dos maridos? Quantas engolem silêncios para manter as aparências? E vocês… quantas vezes já fecharam a porta para poderem finalmente abrir as janelas da vossa alma?