Valentina, 30 anos: Entre a Navalha e o Espelho – Uma História de Aceitação em Lisboa

— Valentina, tu não vais sair assim, pois não? — A voz da minha mãe ecoou pelo corredor, carregada de incredulidade e um toque de vergonha. Eu estava à porta de casa, pronta para ir ao supermercado, de vestido leve e braços nus. Os meus pêlos escuros, visíveis nas axilas e pernas, pareciam gritar mais alto do que qualquer palavra.

Senti o sangue ferver-me nas veias. Respirei fundo, tentando não explodir. — Vou, mãe. E não vou mudar só porque tu ou a vizinha Odete acham estranho.

Ela cruzou os braços, franzindo o sobrolho. — Valentina, as pessoas vão falar. O teu pai já me disse que não entende esta tua mania. Não percebo porque insistes em passar vergonha.

A vergonha. Essa palavra que me acompanhou desde a adolescência, quando as primeiras colegas começaram a depilar-se e eu, com a minha condição de hirsutismo, tentava esconder cada centímetro de pele. Lembro-me das sessões dolorosas de cera, das lâminas escondidas na mochila para emergências, dos cremes que prometiam milagres e só deixavam a pele em carne viva.

Mas agora, aos 30 anos, depois de uma vida inteira a tentar encaixar-me num molde impossível, decidi parar. Não foi fácil. Não foi bonito. Mas foi necessário.

— Mãe — disse, tentando conter as lágrimas —, eu já passei anos a odiar-me por causa disto. Não vou continuar a viver para agradar aos outros.

Ela abanou a cabeça, suspirando. — Não percebo esta geração…

Saí de casa com o coração apertado. O sol de Lisboa batia-me no rosto enquanto descia a rua da Penha de França. Senti os olhares curiosos, alguns sorrisos trocistas. No supermercado, uma senhora murmurou para o marido: — Olha ali aquela rapariga… que falta de asseio.

Apertei os punhos. Quis desaparecer. Mas forcei um sorriso e continuei.

Quando cheguei a casa, o meu irmão Miguel estava sentado no sofá, olhos colados ao telemóvel. — Então, Valentina? Já começaste a tua revolução feminista?

Revirei os olhos. — Não é uma revolução. É só o meu corpo.

Ele encolheu os ombros. — Olha que vais arranjar problemas no trabalho…

O trabalho. Essa era outra batalha. Sou professora numa escola secundária em Lisboa. Os alunos são cruéis quando querem ser. No primeiro dia em que fui de saia sem me depilar, ouvi risos abafados nos corredores.

— Professora Valentina, esqueceu-se da lâmina? — atirou a Mariana, do 10ºB.

Respirei fundo e sorri-lhe. — Não esqueci nada, Mariana. Só decidi aceitar-me como sou.

Ela ficou sem resposta, mas os cochichos continuaram durante semanas.

À noite, sozinha no quarto, olhava-me ao espelho. Via cada pêlo como uma pequena vitória contra anos de auto-ódio. Mas também sentia o peso do julgamento alheio. Lembrei-me do António, o meu ex-namorado, que me dizia: — Gosto de ti natural… mas podias fazer um jeitinho nas pernas, não achas?

Nunca foi suficiente.

Os jantares de família tornaram-se campos de batalha silenciosos. A minha tia Rosa comentava alto: — No meu tempo as mulheres tinham brio…

O meu pai evitava olhar para mim quando usava roupa curta.

Uma noite, depois de mais um jantar tenso, fechei-me na varanda com um copo de vinho barato. Oiço a cidade lá em baixo: buzinas, risos, música distante. Senti-me sozinha como nunca.

Peguei no telemóvel e escrevi um post nas redes sociais:

“Hoje decidi ser eu mesma. Depois de anos a esconder-me atrás de padrões impostos, deixo aqui o meu corpo como ele é: imperfeito e real. Sei que muitos vão criticar, mas talvez alguém se sinta menos só ao ler isto.”

No dia seguinte acordei com dezenas de mensagens: algumas de apoio, outras cheias de ódio.

— És nojenta! — escreveu alguém anónimo.
— Obrigada por partilhares! Também sofro com isto… — respondeu uma rapariga chamada Inês.

No trabalho fui chamada à direção.

— Valentina — começou a diretora com voz grave — temos recebido algumas queixas dos pais sobre a sua apresentação…

Senti o chão fugir-me dos pés.

— Compreendo que seja diferente do habitual — respondi — mas não estou a quebrar nenhuma regra da escola.

Ela suspirou. — Só lhe peço que tenha cuidado… sabe como são os pais.

Saí do gabinete com vontade de gritar.

Em casa, a minha mãe esperava-me com cara fechada.

— Recebi uma chamada da tua tia Lurdes… diz que andas a envergonhar a família na internet!

— Mãe! Isto é sobre mim! Não sobre vocês!

Ela chorou baixinho na cozinha enquanto eu subia para o quarto.

Nessa noite sonhei com a minha infância: eu e o meu avô no quintal da aldeia, ele a ensinar-me a plantar favas.

— Valentina — dizia ele — nunca deixes ninguém dizer-te quem és.

Acordei com lágrimas nos olhos.

Os dias passaram entre olhares reprovadores e mensagens de desconhecidos que diziam sentir-se inspirados pela minha coragem. Comecei a receber convites para falar em podcasts sobre aceitação corporal. Uma aluna aproximou-se no final da aula:

— Professora… obrigada por ser como é. A minha irmã também sofre com isto e sente-se horrível.

Sorri-lhe com ternura. Talvez valesse mesmo a pena.

Mas nem tudo era fácil. O isolamento dentro da família aumentava. No Natal ninguém quis sentar-se ao meu lado na mesa grande da avó Augusta.

— A Valentina agora acha-se melhor do que nós — murmurou o primo Rui.

Senti vontade de fugir dali para sempre.

No entanto, algo dentro de mim mudou. Comecei a sair mais sozinha pelas ruas de Lisboa, sem medo dos olhares ou comentários. Conheci outras mulheres com histórias parecidas: a Joana, que deixou crescer as sobrancelhas; a Carla, que parou de pintar os cabelos brancos; a Sofia, que exibia orgulhosamente as cicatrizes das cirurgias.

Juntas criámos um pequeno grupo de apoio online: “Corpos Livres”.

Aos poucos fui reconstruindo relações com quem realmente me queria bem. O Miguel pediu desculpa:

— Fui parvo contigo… só tinha medo que te magoassem mais.

A minha mãe demorou mais tempo, mas um dia entrou no meu quarto com uma fotografia antiga:

— Olha… eras tão feliz aqui…

Na foto eu tinha seis anos e ria à gargalhada no jardim da escola primária, sem preocupações nem vergonha do corpo.

Ela abraçou-me em silêncio.

Hoje olho-me ao espelho e vejo todas as batalhas escritas na pele: cada pêlo é um lembrete da minha força e da minha história. Ainda há dias difíceis; ainda há quem me julgue ou tente envergonhar-me. Mas já não fujo nem me escondo.

Pergunto-me muitas vezes: quantas Valentina’s continuam presas ao medo do olhar dos outros? E será que algum dia vamos conseguir ser realmente livres dentro da nossa própria pele?