Valentina, 30 anos: Entre a Lâmina e a Liberdade
— Valentina, vais mesmo sair assim? — A voz da minha mãe ecoou pela casa, carregada de incredulidade e um toque de vergonha. Olhei para ela, depois para os meus braços nus, onde os pêlos castanhos se destacavam sob a luz do corredor. Senti o coração apertar, mas mantive-me firme.
— Vou, mãe. Estou cansada de me esconder. — A minha voz saiu mais trémula do que queria.
Ela suspirou alto, como se carregasse o peso do mundo nos ombros. — Não percebo esta mania. Sempre foste tão cuidadosa… O que é que as pessoas vão pensar?
O que é que as pessoas vão pensar? Essa frase perseguia-me desde a infância. Cresci em Almada, numa família tradicional portuguesa, onde as mulheres se depilavam religiosamente e os homens faziam piadas sobre “mulheres peludas” à mesa do jantar. Lembro-me de ter 11 anos e de a minha avó me chamar à cozinha para me mostrar uma lâmina nova. “Já está na altura, menina. Não queremos que andes por aí feita selvagem.”
Aos 13 já sentia vergonha dos meus próprios braços. Aos 16, depilava-me obsessivamente antes das aulas de Educação Física. Aos 20, já tinha desenvolvido uma relação doentia com o espelho: cada pêlo era um inimigo, cada falha uma vergonha. Mas ninguém sabia que por trás desse ritual havia uma condição: hipertricose. O meu corpo produzia mais pêlos do que o “normal” — fosse lá o que isso significasse.
Aos 30 anos, depois de uma década a tentar encaixar-me num molde impossível, decidi parar. Não foi um momento de coragem súbita; foi cansaço acumulado. Cansaço de dores, de irritações na pele, de gastar dinheiro em cremes e lâminas, de ouvir piadas dos colegas no escritório em Lisboa.
O primeiro dia em que fui trabalhar sem me depilar foi um teste à minha coragem. Sentei-me à secretária e senti os olhares furtivos dos colegas. A Joana, do departamento financeiro, aproximou-se com um sorriso forçado.
— Valentina… Estás bem? — perguntou baixinho.
— Estou ótima. Porquê?
Ela hesitou, olhando para os meus braços. — Nada… Só achei estranho…
Sorri-lhe com toda a força que consegui reunir. — É só pêlo, Joana. Não morde.
No almoço, ouvi risos abafados vindos da mesa dos rapazes do marketing. Um deles murmurou: “Parece o primo Rui depois das férias no Alentejo.” Senti o rosto arder, mas continuei a comer como se nada fosse.
À noite, em casa dos meus pais para jantar, o ambiente estava pesado. O meu pai olhou-me de cima a baixo e disse apenas:
— Não percebo estas modernices.
A minha irmã mais nova, Beatriz, tentou aliviar a tensão:
— Deixa lá a Valentina em paz! Cada um faz o que quer com o corpo.
A minha mãe não resistiu:
— Mas tu não vês como ela está? Parece desleixada! No meu tempo…
Levantei-me da mesa sem dizer palavra e fui para o quarto onde cresci. Sentei-me na cama e chorei baixinho, sentindo-me sozinha no meio da minha própria família.
No dia seguinte, recebi uma mensagem da minha melhor amiga, Catarina:
“Vi o teu post no Instagram. És incrível! Obrigada por mostrares que não temos de ser todas iguais.”
Sorri pela primeira vez em dias. Publiquei uma foto dos meus braços e pernas ao natural com a legenda: “O meu corpo não é motivo de vergonha.” Em poucas horas, recebi dezenas de mensagens — algumas de apoio, outras cheias de ódio.
“Que nojo!”, escreveu alguém anonimamente.
“És um exemplo!”, disse outra rapariga.
“Nunca vais arranjar namorado assim”, comentou um perfil falso.
Fiquei a olhar para o telemóvel durante horas. Odiava sentir-me vulnerável, mas também sabia que estava a abrir caminho para outras mulheres como eu.
No trabalho, as coisas pioraram antes de melhorarem. O meu chefe chamou-me ao gabinete:
— Valentina, tens sido alvo de comentários… Não quero problemas na equipa.
Olhei-o nos olhos:
— O problema não sou eu. São os comentários.
Ele ficou sem resposta.
Em casa, os jantares tornaram-se campos de batalha silenciosos. A minha mãe deixou de falar comigo durante dias. O meu pai limitava-se a resmungar sobre “feminismos” e “modas estrangeiras”. Só a Beatriz me apoiava verdadeiramente.
Uma noite, depois de mais uma discussão acesa com a minha mãe — “Nunca vais ser promovida assim! Quem é que te vai respeitar?” — saí porta fora e fui até à praia da Costa da Caparica. Sentei-me na areia fria e deixei as lágrimas correrem livremente.
Lembrei-me da primeira vez que fui chamada de “macaca” na escola primária por causa dos pêlos nos braços. Lembrei-me das tardes passadas a tentar esconder as pernas no verão. Lembrei-me das noites em que sonhava ser invisível.
Mas agora já não queria ser invisível. Queria ser eu mesma — com tudo o que isso implicava.
Comecei a receber mensagens de outras mulheres portuguesas:
“Obrigada por mostrares que não estamos sozinhas.”
“Sempre odiei depilar-me mas nunca tive coragem de parar.”
“A minha mãe também me criticou quando tentei deixar crescer o pêlo…”
Essas mensagens deram-me força para continuar.
Certo dia, ao sair do metro no Cais do Sodré, uma senhora idosa aproximou-se de mim:
— Desculpe… Vi-a na televisão ontem à noite! Falou tão bem… A minha neta sofre tanto com isto… Obrigada por dar voz às mulheres como ela.
Fiquei sem palavras. Abracei-a ali mesmo, no meio da confusão matinal.
Aos poucos, as coisas começaram a mudar em casa também. A minha mãe entrou no meu quarto uma noite e sentou-se ao meu lado na cama.
— Sabes… Quando era nova também odiava depilar-me. Mas nunca tive coragem de dizer nada à minha mãe…
Olhei para ela surpreendida.
— Porque nunca disseste nada?
Ela encolheu os ombros:
— Porque era assim que tinha de ser… Tu és mais corajosa do que eu alguma vez fui.
Chorámos juntas nessa noite — pela dor passada e pela esperança futura.
No trabalho, alguns colegas começaram a defender-me quando ouviam comentários desagradáveis. A Joana pediu desculpa pelo seu comportamento inicial e tornou-se minha aliada.
Ainda há dias difíceis — olhares reprovadores no autocarro, comentários maldosos nas redes sociais, discussões familiares esporádicas — mas hoje sinto-me mais livre do que nunca.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem presas ao medo do julgamento? Quantas escondem quem são para agradar aos outros? Será que um dia vamos conseguir aceitar-nos verdadeiramente — pêlo por pêlo?