Uma Visita Que Mudou Tudo: Como Uma Filha Pode Abandonar a Própria Mãe?

— Dona Amélia, a sua filha vem hoje visitá-la. — anunciei, tentando esconder a ansiedade na minha voz enquanto ajeitava os lençóis da cama.

Ela olhou-me com um sorriso tímido, mas os olhos brilhavam de uma esperança quase infantil. — Achas mesmo, menina Patrícia? Ela disse isso da última vez e não apareceu…

Senti um aperto no peito. Já tinha ouvido histórias assim antes, mas nunca deixava de me afetar. Dona Amélia era uma das pacientes mais queridas do nosso serviço. Pequena, magra, com cabelos brancos sempre apanhados num coque desalinhado, tinha um humor afiado e uma gargalhada contagiante. Mas bastava mencionar a filha, Vera, para o brilho se apagar.

Naquela manhã, Dona Amélia acordou cedo. Pediu para pentear o cabelo e insistiu em vestir a camisola azul que Vera lhe oferecera há anos. — Quero estar bonita para ela — disse-me, com uma voz trémula.

O relógio marcava 15h quando Vera entrou no quarto. Alta, elegante, com um casaco caro e o telemóvel colado à mão. O cheiro do seu perfume encheu o espaço pequeno. Dona Amélia endireitou-se na cama, os olhos arregalados de emoção.

— Olá, mãe. — disse Vera, sem sorrir.

O silêncio caiu como uma pedra. Eu estava ali, fingindo arrumar medicamentos, mas atenta a cada gesto.

— Vera! Que bom ver-te, filha! — exclamou Dona Amélia, estendendo a mão trémula.

Vera hesitou antes de se aproximar. Sentou-se na cadeira ao lado da cama, cruzando as pernas com impaciência.

— Vim só ver como estavas. Não posso ficar muito tempo, tenho uma reunião daqui a pouco.

O sorriso de Dona Amélia vacilou. — Eu… tenho saudades tuas, filha. Sinto tanto a tua falta em casa…

Vera suspirou, desviando o olhar para o telemóvel. — Mãe, já falámos sobre isto. Não posso estar sempre contigo. Tenho a minha vida, o meu trabalho…

— Mas eu só queria conversar um bocadinho… — murmurou Dona Amélia.

A tensão era palpável. Senti vontade de intervir, mas sabia que não era o meu lugar.

— Olha, mãe, eu pago o lar para não te faltar nada. Tens tudo o que precisas. Não percebo porque insistes em voltar para casa…

Dona Amélia baixou os olhos. — Não é disso que preciso, filha…

Vera levantou-se abruptamente. — Tenho mesmo de ir. Depois ligo-te.

E saiu tão rápido quanto entrou. O silêncio que ficou era ensurdecedor.

Aproximei-me da cama e segurei a mão de Dona Amélia. Ela chorava baixinho.

— Desculpe, Dona Amélia…

Ela sorriu-me com tristeza. — Não tens culpa, menina Patrícia. Só queria sentir-me amada outra vez…

Nos dias seguintes, Dona Amélia ficou mais calada. O brilho nos olhos desapareceu. Tentava animá-la com conversas e pequenas surpresas: uma flor do jardim do hospital, um livro antigo que encontrei na biblioteca do serviço. Mas nada parecia preencher aquele vazio.

Uma tarde, enquanto lhe dava o chá, confidenciou-me:

— Sabes, Patrícia… Quando era nova, fiz tudo pela minha filha. Trabalhei em duas limpezas para ela poder estudar no colégio bom. Nunca me importei de não ter férias ou roupas novas… Só queria vê-la feliz. E agora… parece que já não faço falta a ninguém.

Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Pensei na minha própria mãe, sozinha numa aldeia do Alentejo, à espera das minhas visitas que tantas vezes adio por causa do trabalho.

— Dona Amélia, acha que devia falar com a sua filha? Dizer-lhe o que sente?

Ela abanou a cabeça devagarinho. — Não quero ser um peso… Já basta ela pensar isso de mim.

Na semana seguinte, Vera voltou ao hospital. Desta vez vinha acompanhada pelo marido, Rui. O ambiente ficou ainda mais tenso.

— Mãe, tens de perceber que não podes voltar para casa sozinha! — disse Vera, já sem paciência.

— Eu só queria passar uns dias convosco… com os meus netos…

Rui interrompeu-a: — Os miúdos têm escola e atividades. Não temos tempo para cuidar de si.

Dona Amélia encolheu-se na cama como uma criança assustada.

— Mas eu posso ajudar… cozinhar… contar-lhes histórias…

Vera revirou os olhos. — Mãe, por favor! Já não tens idade para isso. E não compliques as coisas!

A discussão subiu de tom até que Rui sugeriu: — Talvez seja melhor procurar um lar definitivo para si.

Dona Amélia ficou em silêncio. Eu sentia-me impotente perante tanta frieza.

Naquela noite, enquanto fazia a ronda pelos quartos escuros do hospital, encontrei Dona Amélia acordada, a olhar pela janela para as luzes da cidade.

— Não consigo dormir… — confessou-me.

Sentei-me ao seu lado e ficámos ali em silêncio durante minutos eternos.

— Sabes o que mais me dói? — perguntou-me finalmente. — Não é estar sozinha… É sentir que já não sou importante para ninguém.

Aquelas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a reparar melhor nos outros idosos do hospital: quantos deles recebiam visitas? Quantos eram deixados ali como se fossem um fardo?

No último dia de internamento, Dona Amélia despediu-se de mim com um abraço apertado.

— Obrigada por me ouvir, Patrícia. Tu foste mais família para mim nestas semanas do que muita gente em anos inteiros.

Quando saiu do hospital acompanhada por uma assistente social — porque Vera não apareceu nem para a levar — senti uma revolta profunda misturada com tristeza.

Naquela noite liguei à minha mãe e prometi-lhe que iria visitá-la no fim de semana seguinte.

Agora pergunto-me: quantos de nós deixamos os nossos pais ou avós entregues à solidão? Será que um dia também seremos esquecidos por quem mais amamos?