Uma Mensagem Errada e o Dia em que o Rui me Deixou
— O que é isto, Joana? — A voz do Rui tremia, mas não era de medo. Era raiva, desilusão, talvez até nojo. Eu estava ainda de pijama, com o cabelo preso num coque desleixado, a tentar preparar o pequeno-almoço. O cheiro do café misturava-se com o aroma do pão torrado, mas naquele instante tudo perdeu o sabor.
Virei-me devagar, o coração já a bater descompassado. O Rui segurava o meu telemóvel na mão, o ecrã iluminado com uma mensagem que eu própria não tinha visto ainda. “Mal posso esperar para te ver outra vez esta noite. Sinto tanto a tua falta. — Miguel”.
O chão fugiu-me dos pés. Miguel era o meu primo, mas o Rui não sabia disso. Só que aquela mensagem… aquela mensagem parecia tudo menos inocente. Tentei falar, mas a voz saiu-me num sussurro rouco:
— Rui, espera…
Ele atirou-me o telemóvel para cima da mesa com força.
— Esperar para quê? Para ouvires mais uma desculpa? Achas que sou estúpido?
Senti as lágrimas a subir-me aos olhos, mas forcei-me a manter-me firme. Não podia ceder agora.
— Rui, por favor, deixa-me explicar. O Miguel é meu primo! Ele está a passar por um divórcio horrível e tem dormido cá em casa algumas noites porque não tem para onde ir. Eu devia ter-te contado, mas…
Ele interrompeu-me com um gesto brusco.
— Não me interessa! — gritou. — Sempre foste tão boa a esconder as coisas. Agora percebo porque é que andavas tão distante ultimamente.
O nosso casamento nunca foi perfeito, mas sempre achei que o amor bastava. Casámo-nos há cinco anos numa pequena igreja em Sintra, rodeados apenas pela família mais próxima e alguns amigos de infância. Não tínhamos dinheiro para grandes festas nem lua-de-mel nas Maldivas como a minha irmã Teresa teve, mas tínhamos sonhos: uma casa cheia de filhos, domingos de cozido à portuguesa com os pais dele e os meus.
Mas a vida nunca foi fácil. O Rui perdeu o emprego na fábrica há dois anos e desde então andava amargo, fechado em si mesmo. Eu trabalhava como auxiliar numa escola primária e fazia limpezas ao fim de semana para ajudar nas contas. As discussões começaram por coisas pequenas: contas por pagar, sogra a meter-se na nossa vida, o cansaço de não termos tempo um para o outro.
Naquela manhã, tudo explodiu.
— Rui, por favor… — tentei aproximar-me dele, mas ele recuou como se eu fosse um animal selvagem.
— Não te atrevas! — gritou ele. — Não quero ouvir mais nada. Vou buscar as minhas coisas.
Ouvi-o subir as escadas a passos largos. Sentei-me à mesa da cozinha e chorei em silêncio, as mãos a tremerem tanto que quase deixei cair a chávena de café. O Miguel entrou na cozinha nesse momento, ainda meio despenteado e com ar de quem não dormiu nada.
— Joana? O que se passa?
Olhei para ele com raiva e desespero.
— A tua mensagem! O Rui viu-a! Achou que… achou que eu estava a trair-o contigo!
O Miguel ficou branco como a cal.
— Joana, desculpa… eu só queria agradecer-te por me deixares ficar aqui…
— Agora não interessa! — gritei-lhe. — Ele vai-se embora!
Ouvimos a porta do quarto bater com força lá em cima. O Miguel tentou subir atrás do Rui, mas eu agarrei-o pelo braço.
— Não vás. Isto é entre mim e ele.
Minutos depois, o Rui desceu com uma mala na mão e os olhos vermelhos de raiva ou talvez de choro — nunca saberei ao certo.
— Fica com a casa — disse ele num tom frio. — Eu depois mando alguém buscar o resto das minhas coisas.
E saiu sem olhar para trás.
Fiquei ali parada, a ouvir o silêncio pesado da casa. O Miguel tentou consolar-me, mas eu só queria estar sozinha. Liguei à minha mãe, mas ela limitou-se a dizer:
— Sempre te disse que devias ter casado com alguém mais estável. O Rui nunca foi homem para ti.
Desliguei-lhe na cara. Não queria ouvir julgamentos nem conselhos inúteis.
Os dias seguintes foram um tormento. Os vizinhos começaram a cochichar quando me viam sair de casa sozinha. A sogra ligou-me a insultar-me:
— Tu destruíste o meu filho! Sempre foste uma sonsa!
No trabalho, as colegas olhavam-me de lado. Uma delas até comentou:
— Ouvi dizer que andas metida com outro…
A vergonha era insuportável. Só queria desaparecer.
O Miguel acabou por sair de casa uns dias depois para evitar mais confusões. Fiquei sozinha com os meus pensamentos e as minhas culpas. Comecei a duvidar de mim própria: teria sido mesmo só um mal-entendido? Ou será que eu e o Rui já estávamos condenados há muito tempo?
Uma noite, depois de mais um jantar solitário, decidi escrever-lhe uma carta. Expliquei tudo: como o Miguel era só família, como eu tinha medo de lhe contar porque sabia que ele estava frágil e inseguro desde que perdeu o emprego; como eu própria me sentia sozinha e perdida.
Nunca obtive resposta.
Os meses passaram devagar. Tentei reconstruir a minha vida: inscrevi-me num curso à noite para tentar arranjar um emprego melhor; comecei a fazer caminhadas na serra para limpar a cabeça; reaproximei-me da minha irmã Teresa, apesar das nossas diferenças.
Mas havia sempre um vazio dentro de mim. Às vezes sonhava que o Rui voltava para casa e tudo voltava ao normal — mas acordava sempre sozinha.
Um dia encontrei-o por acaso no supermercado do bairro. Estava mais magro e tinha olheiras profundas. Olhou para mim durante uns segundos intermináveis antes de desviar o olhar.
— Olá, Rui…
Ele assentiu com a cabeça, sem sorrir.
— Espero que estejas bem — disse eu, tentando soar natural.
Ele hesitou antes de responder:
— Tu também…
E afastou-se sem mais uma palavra.
Saí do supermercado com lágrimas nos olhos, sentindo-me mais sozinha do que nunca.
Hoje olho para trás e pergunto-me: como é possível que uma simples mensagem tenha destruído tudo? Será que alguma vez poderemos perdoar-nos verdadeiramente pelos erros do passado? E vocês… já passaram por algo assim? Como se reconstrói uma vida depois de perder tudo aquilo em que acreditávamos?