Uma Chamada à Meia-Noite da Minha Sogra Levou-me, Com o Meu Filho, à Esquadra

— Não podes sair assim, Mariana! — gritou a minha sogra, Dona Lurdes, com a voz embriagada e os olhos semicerrados de raiva. O cheiro a vinho tinto pairava no ar da sala, misturado com o aroma adocicado do bolo de aniversário que ninguém parecia querer comer. O relógio marcava quase meia-noite e o meu filho, Tomás, chorava no meu colo há mais de uma hora.

Respirei fundo, tentando não ceder ao pânico. O meu marido, Rui, estava encostado à parede, de copo na mão, evitando o meu olhar. Senti-me sozinha, rodeada de família. A festa tinha começado animada, mas como sempre, bastaram uns copos a mais para que as velhas mágoas viessem ao de cima.

— Lurdes, por favor — pedi baixinho —, o Tomás está exausto. Preciso de o levar para casa.

Ela aproximou-se de mim, tropeçando no tapete. — Achas-te melhor do que nós? Só porque agora és mãe? — cuspiu as palavras. — O Rui nunca foi assim antes de casar contigo.

O Rui olhou finalmente para mim, mas não disse nada. Senti uma lágrima quente escorrer-me pela face. Não era a primeira vez que me sentia uma intrusa naquela casa, mas nunca tinha sido tão humilhante.

Peguei no casaco do Tomás e tentei sair em silêncio. Mas Dona Lurdes agarrou-me pelo braço com uma força surpreendente para alguém da sua idade.

— Não vais a lado nenhum! — berrou. — O meu neto fica cá!

O Tomás chorava ainda mais alto agora. O meu coração batia descompassado. Olhei para o Rui, implorando por apoio.

— Rui, diz-lhe qualquer coisa… — sussurrei.

Ele encolheu os ombros e virou costas. Senti-me traída.

Foi então que ouvi a porta da rua bater com força. O cunhado Paulo apareceu na sala, vermelho de raiva.

— O que se passa aqui? — perguntou, olhando de mim para a mãe.

— A Mariana quer levar o menino embora! — gritou Dona Lurdes. — Não lhe chega estragar o casamento do irmão, agora quer afastar o Tomás da família!

— Chega! — gritei eu, sem conseguir controlar-me. — Não aguento mais isto! Vou para casa!

Arranquei-me do aperto dela e saí porta fora com o Tomás ao colo, ignorando os gritos atrás de mim. As lágrimas corriam-me pelo rosto enquanto caminhava apressada pela rua escura até ao carro. Sentei o Tomás na cadeirinha e sentei-me ao volante, mãos a tremer.

O telemóvel tocou. Era o Rui.

— Mariana… volta para trás. A minha mãe está histérica. Diz que vais raptar o Tomás…

— Raptar?! Rui, ele é MEU filho! — gritei.

— Por favor… volta só para acalmar as coisas.

Desliguei-lhe o telefone na cara. Liguei o carro e fui para casa.

Quando cheguei ao prédio, reparei num carro da polícia estacionado à porta. O meu coração gelou. Saí do carro devagarinho com o Tomás ao colo e fui abordada por dois agentes.

— Boa noite, é a senhora Mariana Silva? — perguntou um deles.

Assenti, incapaz de falar.

— Recebemos uma chamada a denunciar um possível rapto de menor… Pode identificar-se?

Mostrei os documentos com as mãos a tremer. O Tomás soluçava baixinho no meu ombro.

— É o seu filho? — perguntou o outro agente.

— É… claro que é! — respondi, quase sem voz.

Os agentes trocaram olhares desconfortáveis. Um deles pediu-me para entrar na esquadra para esclarecer a situação.

Sentei-me numa cadeira dura com o Tomás ao colo enquanto um agente escrevia no computador. Expliquei tudo: a festa, as discussões, a minha sogra bêbeda, o Rui ausente. Senti-me exposta e humilhada como nunca antes.

— Compreendemos a situação, senhora Mariana — disse finalmente o agente. — Mas temos de ouvir também o seu marido e a sua sogra.

Liguei ao Rui. Ele apareceu meia hora depois, pálido e nervoso. Dona Lurdes veio atrás dele, ainda mais alterada do que antes.

— Ela quer levar-me o neto! — gritava ela na receção da esquadra. — Não confio nela!

O agente pediu silêncio e explicou-lhe calmamente que não havia qualquer indício de rapto ou perigo para o Tomás. Mas Dona Lurdes não se calava.

— Ela não é de cá! Veio de Lisboa só para se meter na nossa família! Nunca gostou de nós!

Senti um nó na garganta. O Rui ficou calado ao meu lado, incapaz de me defender.

O agente suspirou e virou-se para mim:

— Senhora Mariana, quer apresentar queixa contra a sua sogra?

Olhei para Dona Lurdes: olhos vermelhos de álcool e mágoa antiga; para Rui: olhar vazio; para o Tomás: finalmente adormecido no meu colo.

— Não… só quero ir para casa com o meu filho — respondi baixinho.

Saímos da esquadra em silêncio. No carro, Rui tentou justificar-se:

— A minha mãe não está bem… sabes como ela é…

— E tu? Vais continuar a esconder-te atrás dela? — perguntei-lhe, sem esperar resposta.

Chegámos a casa e coloquei o Tomás na cama. Sentei-me no sofá da sala escura e chorei tudo o que tinha guardado durante anos: as humilhações silenciosas, as discussões abafadas pelo medo de perder o Rui, a solidão de ser sempre “a outra” naquela família.

Na manhã seguinte, Dona Lurdes ligou-me:

— Mariana… desculpa… ontem exagerei…

Não respondi. Desliguei o telefone e abracei o Tomás com força.

Agora pergunto-me: quantas vezes devemos perdoar quem nos magoa só porque é família? E até onde devemos ir para proteger quem amamos?