Um Sábado Qualquer no Pingo Doce: O Peso Invisível da Solidão

— Dona Amélia, falta-lhe aqui dois euros — disse a rapariga da caixa, com uma voz baixa mas firme, enquanto os olhos dos clientes atrás de mim pareciam perfurar-me as costas.

Senti o rosto a arder. Olhei para o visor: 23,47€. A minha carteira, velha e gasta, só tinha vinte e uma moedas e algumas notas pequenas. O resto do mês ainda estava longe e a reforma já quase toda contada. Olhei para trás, para a fila impaciente, e depois para o saco de arroz e o frango embalado. O que podia deixar? O que era dispensável?

— Pode tirar o queijo, por favor — murmurei, tentando não tremer.

A rapariga pegou no queijo e passou-o para o lado. Senti-me pequena, quase invisível, mas ao mesmo tempo exposta como nunca. Uma senhora atrás de mim suspirou alto. Um senhor de boné resmungou qualquer coisa sobre “velhos que não sabem fazer contas”. Mordi o lábio para não chorar.

Nunca pensei que um dia me sentiria assim: tão desamparada, tão sozinha. Quando era mais nova, a minha vida era barulhenta, cheia de filhos e netos, almoços de domingo e risos na cozinha. Agora, os meus filhos vivem longe — a Ana em Braga, o Rui em Londres — e os netos só vejo pelo telemóvel, quando se lembram de ligar.

Saí do supermercado com as compras reduzidas e o coração pesado. O céu estava cinzento, ameaçando chuva. Caminhei devagar até ao prédio antigo onde moro há mais de trinta anos. No elevador, olhei para o meu reflexo: cabelos brancos desalinhados, olhos cansados, rugas profundas. Lembrei-me das palavras da minha mãe: “A velhice não é para cobardes”.

No corredor, encontrei a Dona Lurdes, a vizinha do terceiro andar.

— Então, Amélia, tudo bem?

Sorri com esforço.

— Vai-se andando, Dona Lurdes. Os ossos já não ajudam.

Ela olhou para as minhas compras.

— Só isso hoje?

Assenti. Não quis explicar mais. Não queria piedade.

No meu apartamento, o silêncio era ensurdecedor. Pousei as compras na bancada e sentei-me à mesa da cozinha. Olhei para o telemóvel. Nenhuma mensagem dos filhos. Nenhuma chamada perdida.

Lembrei-me do António, o meu marido. Já lá vão oito anos desde que partiu. Ele nunca me deixava sentir sozinha. Agora, os dias arrastam-se entre idas ao centro de saúde, novelas na televisão e conversas breves com vizinhos no elevador.

À tarde, tentei distrair-me com um pouco de tricot. As mãos já não têm a destreza de antes. O fio escapava-se-me entre os dedos trémulos. Suspirei e larguei tudo.

O telefone tocou finalmente. Era a Ana.

— Mãe! Está tudo bem?

— Está, filha. Só um pouco cansada — menti.

— Olhe que tem de comer bem! Não se esqueça dos remédios.

— Não me esqueço.

— Este fim de semana não posso ir aí… O João tem futebol e eu estou cheia de trabalho.

— Não faz mal, filha. Eu compreendo.

Desliguei com um nó na garganta. Compreendo sempre tudo. Compreendo que têm vidas ocupadas, que não podem vir tantas vezes como eu gostaria. Mas será que alguém compreende o vazio que fica?

Ao jantar, aqueci uma sopa instantânea e comi uma fatia de pão seco. Lembrei-me do queijo que deixei no supermercado e senti uma tristeza funda. Não era pelo queijo em si — era pelo simbolismo daquele momento: ter de escolher entre necessidades básicas porque o dinheiro não chega.

No dia seguinte, fui à missa como sempre faço aos domingos. Sentei-me no banco do fundo, junto da Dona Lurdes e do Senhor Manuel. Durante a homilia, o padre falou sobre cuidar dos outros, sobre não deixar ninguém sozinho. Olhei à minha volta: tantos rostos envelhecidos, tantos olhares perdidos no vazio.

Depois da missa, fomos tomar café ao café da esquina. A conversa girou em torno das dores nas costas, das consultas adiadas no centro de saúde e das saudades dos filhos ausentes.

— A minha neta nem me liga — desabafou a Dona Lurdes.

— O meu filho só vem cá no Natal — disse o Senhor Manuel.

Senti-me menos sozinha naquele instante. Mas também percebi que todos carregamos o mesmo peso: a solidão dos velhos é uma epidemia silenciosa nesta cidade apressada.

Na segunda-feira, fui buscar os remédios à farmácia. A farmacêutica sorriu-me com gentileza.

— Como está hoje, Dona Amélia?

— Vai-se andando…

Ela olhou para mim com compaixão verdadeira.

— Se precisar de alguma coisa… sabe que pode contar comigo.

Agradeci com um sorriso tímido. Mas será que posso mesmo? Ou será apenas uma frase feita?

Ao regressar a casa, cruzei-me com um grupo de jovens à porta do prédio. Riam alto, cheios de vida e energia. Senti inveja daquela leveza. Quando foi que perdi essa alegria? Quando foi que me tornei invisível?

À noite, sentei-me na varanda a olhar para as luzes da cidade. Pensei em tudo o que vivi — as alegrias e as dores, os sacrifícios feitos pelos filhos, as noites sem dormir à espera que chegassem sãos e salvos das festas da faculdade… Agora sou eu quem espera por uma visita ou por uma chamada.

Oiço muitas vezes dizerem que os velhos são rabugentos ou exigentes demais. Mas será que alguém imagina o que é passar dias sem ouvir uma voz amiga? Ter de escolher entre comprar comida ou pagar os medicamentos? Sentir-se um peso para os próprios filhos?

Naquela noite chorei baixinho, para ninguém ouvir — nem mesmo eu queria admitir aquela tristeza profunda.

No dia seguinte acordei decidida: não podia continuar assim. Liguei à Junta de Freguesia e perguntei sobre atividades para idosos. Inscrevi-me num grupo de leitura e numa aula de ginástica suave. Talvez ali encontrasse companhia… ou pelo menos distração.

Na primeira sessão do grupo de leitura conheci a Maria José e a Teresa. Rimos juntas das histórias antigas e partilhámos memórias da infância no campo. Pela primeira vez em muito tempo senti-me parte de alguma coisa.

Mas ao regressar a casa, o vazio esperava-me à porta como sempre.

Às vezes pergunto-me: será este o destino de todos nós? Trabalhar uma vida inteira para acabar assim — esquecidos pelos próprios filhos, reduzidos a contas feitas ao cêntimo na caixa do supermercado?

Se ao menos as pessoas olhassem realmente umas para as outras… Se ao menos alguém perguntasse: “Precisa de ajuda? Quer conversar?” Talvez as coisas fossem diferentes.

E vocês? Já olharam bem para os vossos pais ou avós ultimamente? Já lhes perguntaram como se sentem… ou será que também acham que vão estar cá para sempre?