Um Minuto Tarde Demais: A Minha Vida com a Sogra General

— Já viste as horas, Mariana? — A voz da Dona Lurdes ecoou pela cozinha, cortando o silêncio da manhã como uma faca afiada. — O pequeno-almoço devia estar na mesa há dez minutos!

Senti o coração apertar no peito. As mãos tremiam enquanto tentava equilibrar a bandeja com as chávenas de café e as torradas. O relógio da parede marcava 7h11. Um minuto tarde demais. Mais uma vez.

— Desculpe, Dona Lurdes — murmurei, tentando esconder o embaraço. — O Miguel acordou a chorar e…

— Sempre desculpas! — interrompeu ela, os olhos azuis cravados em mim como se quisesse atravessar-me. — Quando eu tinha a tua idade, já tinha feito o almoço e limpo a casa toda! Não sei o que o meu filho viu em ti.

O Miguel, meu marido, estava sentado à mesa, enterrado no jornal, fingindo não ouvir. Era sempre assim: entre mim e a mãe dele, ele era um fantasma. Só se manifestava quando a situação já era insuportável. Mas eu sabia que ele ouvia tudo.

A casa dos pais do Miguel era grande, antiga, com paredes grossas e frias mesmo no verão. Mudámo-nos para lá depois do casamento porque ele insistiu que era só “por uns meses” até encontrarmos um apartamento nosso. Dois anos depois, ainda lá estávamos. E eu sentia-me cada vez mais pequena.

A Dona Lurdes era viúva há mais de uma década e nunca perdoou ao mundo por isso. O filho era o seu orgulho, o seu projeto de vida. Eu era apenas uma intrusa que ameaçava o equilíbrio daquela fortaleza.

— Mariana, não te esqueças de passar a ferro as camisas do Miguel hoje — disse ela, levantando-se da mesa com um suspiro teatral. — E vê se desta vez não deixas vincos.

Assenti em silêncio. O Miguel levantou os olhos do jornal por um segundo e depois voltou a mergulhar nas notícias. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim, mas engoli-a como tantas outras vezes.

Depois do pequeno-almoço, fui arrumar a cozinha. O Miguel saiu para o trabalho sem sequer se despedir. Fiquei sozinha com Dona Lurdes e o silêncio pesado da casa. Ela entrou na cozinha e ficou a observar-me enquanto lavava a loiça.

— Sabes, Mariana — começou ela, com aquele tom condescendente que me fazia ferver por dentro —, eu só quero o melhor para o meu filho. Ele merece uma mulher que saiba cuidar dele.

Mordi o lábio até quase sangrar. Queria gritar-lhe que eu também merecia respeito, que também tinha sonhos e desejos. Mas limitei-me a acenar com a cabeça.

À tarde, enquanto passava as camisas do Miguel, ouvi Dona Lurdes ao telefone com uma vizinha:

— A Mariana? Coitada… Não tem jeito nenhum para isto. O Miguel é que sofre… — A voz dela era baixa mas clara o suficiente para eu ouvir cada palavra.

Senti as lágrimas a arderem-me nos olhos. Tinha deixado tudo para trás para estar com o homem que amava: o meu emprego numa loja de roupa em Setúbal, os meus amigos, até a minha mãe doente. E agora era isto: uma vida de servidão e humilhação.

Nessa noite, quando Miguel chegou a casa, tentei falar com ele:

— Miguel, precisamos mesmo de continuar aqui? Não aguento mais…

Ele suspirou, cansado:

— Mariana, sabes que agora não podemos sair. O dinheiro está apertado e a minha mãe precisa de nós.

— Precisa de ti — corrigi, sentindo a voz tremer. — Eu sou só um estorvo aqui.

Ele não respondeu. Virou-se para o lado e adormeceu em minutos. Fiquei acordada horas, a olhar para o teto escuro do nosso quarto gelado.

Os dias passaram todos iguais: críticas da Dona Lurdes, indiferença do Miguel, solidão esmagadora. Comecei a perder peso, a dormir mal. A minha mãe ligava-me todos os domingos:

— Estás bem, filha? Pareces tão em baixo…

Mentia sempre:

— Está tudo bem, mãe. Só estou cansada.

Até que um dia, ao regressar das compras, encontrei Dona Lurdes no meu quarto, remexendo nas minhas gavetas.

— O que está a fazer? — perguntei, sem conseguir esconder o choque.

Ela olhou-me com desdém:

— Só queria ver se tinhas alguma coisa de valor escondida aqui. Nunca se sabe…

Senti uma fúria incontrolável subir-me à cabeça:

— Isto é demais! Não tem direito!

Ela riu-se:

— Esta casa é minha! Se não gostas, sabes onde é a porta.

Nessa noite fiz as malas. Liguei à minha mãe:

— Mãe… posso ir para casa?

Ela chorou do outro lado da linha:

— Claro que sim, filha! Vem já!

Quando contei ao Miguel que ia embora, ele limitou-se a encolher os ombros:

— Faz o que quiseres.

Saí daquela casa sem olhar para trás. Senti-me livre e ao mesmo tempo vazia. Nos dias seguintes chorei muito, mas também comecei a recuperar forças. Arranjei trabalho numa pastelaria perto da casa da minha mãe e voltei a sorrir aos poucos.

O Miguel nunca me procurou. Soube mais tarde que continuou a viver com a mãe dele como sempre quisera Dona Lurdes.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas em casas que não são suas? Quantas sacrificam tudo por amor e acabam sozinhas? Será que vale mesmo a pena anularmo-nos por alguém que nunca nos vê realmente?