Um Filho nos Meus Sonhos, Encontrado Onde Menos Esperava
— Não aguento mais, Rui! — gritei, sentindo a garganta arder de tanto chorar. O eco da minha voz perdeu-se na cozinha fria, entre pratos por lavar e o cheiro a café requentado. O Rui olhou-me, olhos vermelhos, mãos trémulas. — Kim, por favor… — tentou ele, mas eu já não queria ouvir. Cinco anos. Cinco anos de esperanças desfeitas, de testes negativos, de médicos que me olhavam com pena e diziam: “É difícil, Kimberly. O seu corpo não colabora.”
A minha mãe dizia sempre que ser mãe era o maior dom da vida. Cresci a embalar bonecas e a imaginar nomes para os meus filhos: Leonor, Tomás, Matilde. Mas a cada mês que passava, a cada consulta de fertilidade, sentia esses nomes a afastarem-se como barcos à deriva. O Rui tentava ser forte por nós dois, mas eu via-o a desmoronar-se em silêncio. Às vezes, à noite, ouvia-o chorar na casa de banho. Fingíamos que estava tudo bem, mas a casa estava cheia de silêncios pesados.
— E se tentássemos outra vez? — sugeriu ele numa manhã de domingo, enquanto mexia o café com força desnecessária.
— Para quê? Para mais uma desilusão? — respondi, sem conseguir esconder o amargor.
As discussões tornaram-se rotina. A minha sogra, Dona Lurdes, fazia questão de me lembrar que o Rui era filho único e que esperava netos. — Já pensaram em adotar? — perguntou ela um dia, com aquele tom passivo-agressivo que só as sogras portuguesas sabem usar.
— Não é assim tão simples! — explodi eu. — Não é só ir buscar uma criança como quem vai ao supermercado!
A verdade é que já tínhamos pensado nisso. Mas eu sentia-me culpada. Como se adotar fosse admitir derrota, como se o meu corpo tivesse falhado e eu não fosse mulher suficiente.
O tempo foi passando. Os amigos começaram a afastar-se; os convites para batizados e festas de aniversário diminuíram. Era como se tivéssemos uma doença contagiosa chamada infertilidade. Só a minha irmã, Mariana, nunca desistiu de mim. Ligava-me todos os dias:
— Kim, não te esqueças que és muito mais do que isto. — dizia ela.
Mas eu sentia-me vazia. Até ao dia em que tudo mudou.
Era uma sexta-feira chuvosa quando ouvi um choro vindo do patamar do prédio. Abri a porta e vi uma criança pequena, encharcada até aos ossos, com os olhos enormes e assustados. Trazia um papel amarrotado na mão: “Chamo-me Diogo. Por favor, cuidem dele.”
O meu coração disparou. Chamei o Rui e juntos levámos o menino para dentro. Ele tremia tanto que mal conseguia falar.
— Onde estão os teus pais? — perguntei suavemente.
Ele apenas abanou a cabeça e agarrou-se ao meu braço com força.
Chamámos a polícia, claro. Mas enquanto esperávamos, dei-lhe banho e vesti-lhe uma camisola do Rui. Ele sorriu pela primeira vez quando lhe dei um copo de leite quente.
— Obrigado… — murmurou.
Naquela noite não dormi. Fiquei sentada ao lado da cama improvisada onde o Diogo dormia profundamente. Senti algo dentro de mim que não sentia há anos: esperança.
Os dias seguintes foram um turbilhão. A assistente social veio buscar o Diogo, mas antes de sair ele olhou para mim com olhos suplicantes:
— Posso voltar?
O Rui apertou-me a mão. Pela primeira vez em muito tempo, senti-nos unidos.
A história do Diogo espalhou-se pelo bairro. Descobriu-se que a mãe era toxicodependente e tinha desaparecido há dias. O pai nunca fora conhecido. O menino ficou temporariamente num lar enquanto as autoridades procuravam familiares.
Eu e o Rui visitávamos o Diogo sempre que podíamos. Levávamos-lhe brinquedos, livros e bolos caseiros. Ele começou a chamar-me “mãe Kim”. Cada vez que saía do lar sentia um vazio maior do que qualquer teste negativo.
Uma noite, depois de uma dessas visitas, sentei-me com o Rui na varanda.
— E se…? — comecei eu.
Ele sorriu antes de eu acabar a frase.
— Sim. Vamos tentar adotá-lo.
O processo foi longo e doloroso. Questionaram-nos sobre tudo: rendimentos, estabilidade emocional, até sobre as nossas discussões passadas. Senti-me exposta, julgada por estranhos que nunca saberiam o quanto eu desejava aquele menino.
A Dona Lurdes foi contra desde o início:
— Uma criança com esse passado? Nunca se sabe o que traz no sangue…
Discutimos feio nesse dia. Pela primeira vez enfrentei-a:
— O amor não se mede pelo sangue! O Diogo é tão merecedor de amor como qualquer outro neto!
O Rui ficou do meu lado e isso fortaleceu-nos como casal.
Finalmente, depois de meses de espera e ansiedade, recebemos a notícia: podíamos trazer o Diogo para casa.
No primeiro jantar juntos como família, ele olhou para mim e disse:
— Agora já posso chamar-te mãe?
Chorei tanto nesse dia que pensei que me ia afogar nas minhas próprias lágrimas.
A vida não ficou mais fácil de repente. O Diogo tinha pesadelos frequentes; às vezes fechava-se no quarto durante horas. Tive medo de não ser suficiente para ele. Mas cada pequeno avanço — um sorriso, um abraço espontâneo — era uma vitória.
A Dona Lurdes demorou meses a aceitar o Diogo. Mas um dia vi-a a ensinar-lhe a fazer arroz doce na cozinha e soube que tudo ia ficar bem.
Hoje olho para trás e percebo que ser mãe não é só dar à luz; é escolher amar todos os dias, mesmo quando dói.
Às vezes pergunto-me: quantas mães há por aí à espera de encontrar os seus filhos nos lugares mais improváveis? Será que o amor verdadeiro precisa mesmo de laços de sangue ou basta apenas coragem para abrir o coração?