Um Coração Dividido: Quando o Amor de um Pai Deixa uma Filha nas Sombras

— Alexandra, não faças tanto barulho! O João está a estudar! — A voz do meu pai ecoou pela casa, cortante como uma faca. Eu tinha apenas oito anos, mas já sabia que havia regras diferentes para mim e para o João. Ele era o filho do primeiro casamento do meu pai, e eu, a filha da segunda mulher, a minha mãe, a Nancy.

Lembro-me de estar sentada no chão da sala, com os meus lápis de cor espalhados à minha volta. Tinha acabado de desenhar um cavalo — o meu animal preferido — e queria mostrar ao meu pai. Mas ele nem olhou para mim. Estava demasiado ocupado a ajudar o João com os trabalhos de casa de matemática. O João era dois anos mais velho do que eu e parecia sempre saber exatamente como agradar ao nosso pai. Eu, por outro lado, sentia-me como um móvel antigo, sempre presente mas raramente notado.

A minha mãe tentava equilibrar as coisas. À noite, quando me deitava, sentava-se ao meu lado e acariciava-me o cabelo. — Sabes que és muito especial para mim, não sabes? — dizia ela, com aquela voz suave que só as mães têm. Eu sorria, mas por dentro sentia um buraco negro a crescer. Porque é que o papá não me via assim?

Os jantares eram sempre tensos. O meu pai perguntava ao João sobre a escola, sobre os amigos, sobre os jogos de futebol. Quando chegava a minha vez, fazia perguntas rápidas e distraídas: — E tu, Alexandra? Está tudo bem na escola? — Eu respondia com um aceno tímido e voltava ao silêncio. O João falava alto, ria-se das piadas do meu pai e recebia palmadas carinhosas nas costas. Eu limitava-me a observar.

Certa vez, no Natal, escrevi uma carta ao Pai Natal a pedir apenas uma coisa: “Quero que o papá goste de mim como gosta do João.” Escondi a carta debaixo da almofada, com medo que alguém a encontrasse. No dia seguinte, encontrei um presente bonito aos pés da árvore — um livro de histórias — mas o olhar do meu pai continuava distante.

A situação piorou quando fiz dez anos. O João começou a sair mais com os amigos e a trazer más notas para casa. O meu pai ficava furioso, mas mesmo assim passava horas a tentar ajudá-lo a recuperar. Eu tirei um 19 a Ciências e mostrei-lhe o teste com orgulho. Ele olhou rapidamente e disse: — Muito bem, filha. Agora vai ajudar a tua mãe na cozinha.

A minha mãe começou a discutir mais com o meu pai. Uma noite ouvi-os aos gritos na sala:
— Não vês que estás a magoar a Alexandra? Ela sente-se posta de parte! — gritava a minha mãe.
— Não digas disparates! Eu trato os dois da mesma forma! — respondeu ele, irritado.
— Não tratas nada! Ela só quer sentir-se amada!

Tapei os ouvidos com a almofada e chorei baixinho. No dia seguinte, ninguém falou sobre o assunto. Era como se nada tivesse acontecido.

O tempo foi passando e aprendi a viver com aquela ausência. Tornei-me mais fechada, passei a refugiar-me nos livros e nos desenhos. A minha mãe continuava a ser o meu porto seguro, mas eu queria tanto sentir aquele orgulho nos olhos do meu pai…

Quando fiz quinze anos, decidi confrontá-lo. Esperei até estarmos sozinhos na sala.
— Pai… posso perguntar-te uma coisa?
Ele olhou para mim por cima do jornal.
— Diz lá.
— Porque é que gostas mais do João do que de mim?
O jornal caiu-lhe das mãos.
— O quê? Que disparate é esse?
— É verdade… Nunca me dás atenção como dás a ele… Nunca te orgulhas de mim…
Ele ficou calado durante uns segundos eternos.
— Alexandra… eu… não é verdade…
Mas não conseguiu acabar a frase. Levantou-se e saiu da sala. Fiquei ali sentada, sozinha, com as lágrimas a correrem-me pela cara.

Depois desse dia, as coisas mudaram pouco. O João acabou por ir estudar para Lisboa e eu fiquei em casa com os meus pais. A ausência dele tornou tudo ainda mais silencioso. O meu pai parecia perdido sem o filho preferido por perto. Eu tentei aproximar-me dele — convidei-o para ir ao cinema comigo, pedi-lhe ajuda nos estudos — mas ele estava sempre cansado ou ocupado.

A minha mãe adoeceu quando eu tinha dezassete anos. Foi um período terrível; passava horas no hospital ao lado dela. O meu pai visitava-a pouco; dizia que não aguentava ver pessoas doentes. Senti uma raiva imensa crescer dentro de mim — como podia ele ser tão frio?

No funeral da minha mãe, o João veio de Lisboa e ficou ao lado do meu pai durante toda a cerimónia. Eu chorei sozinha num banco da igreja. Ninguém me abraçou.

Depois disso, decidi sair de casa assim que terminei o secundário. Fui estudar para o Porto e nunca mais voltei àquela casa senão em visitas rápidas no Natal ou na Páscoa. O meu pai envelheceu depressa; o João casou-se e teve filhos. Eu continuei solteira, dedicada ao trabalho e aos meus desenhos.

Anos depois, recebi uma chamada do hospital: o meu pai estava muito doente e queria ver-me. Hesitei durante dias antes de ir visitá-lo.

Quando entrei no quarto, ele estava magro e pálido, com os olhos fundos.
— Alexandra… — murmurou ele — desculpa…
Sentei-me ao lado dele sem saber o que dizer.
— Fui um mau pai para ti… Sei disso agora… Mas nunca deixei de te amar… Só não soube mostrar…
As lágrimas correram-lhe pelo rosto enrugado.
Eu segurei-lhe na mão e senti uma mistura de tristeza e alívio.
— Eu só queria ter sido vista por ti…
Ele fechou os olhos e apertou-me a mão com força.

Poucos dias depois, ele morreu. No funeral, o João chorou convulsivamente; eu fiquei em silêncio, sentindo finalmente uma paz estranha dentro de mim.

Agora olho para trás e pergunto-me: quantas crianças crescem à sombra dos afetos partidos dos pais? Quantos adultos carregam feridas invisíveis por nunca terem sido vistos? Será possível perdoar verdadeiramente quem nos falhou quando mais precisávamos?