Um Coração de Mãe em Ruínas: O Grito de Valentina
— Mãe, por favor, não me deixes aqui! — O grito da Valentina ecoou pelo corredor frio do prédio antigo do meu ex-marido, o Rui. O som atravessou-me como uma faca. Senti o coração a bater tão forte que temi desmaiar ali mesmo, mas não podia fraquejar. Não quando a minha filha precisava de mim.
A porta estava entreaberta. Entrei sem pedir licença, com as mãos a tremer. O Rui estava de costas, a voz dele era um trovão: — Cala-te, Valentina! Já disse que não vais ligar à tua mãe!
— Rui! — gritei eu, com uma raiva que nunca pensei sentir. — O que é que se passa aqui?
Ele virou-se, olhos vermelhos, cheiro a cerveja no ar. Valentina, com apenas oito anos, encolhida num canto da sala, lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto sujo. O boneco preferido dela caído no chão, uma orelha rasgada.
— Isto é entre mim e a minha filha — disse ele, tentando manter a pose de pai autoritário. Mas eu conhecia aquele olhar. Conhecia-o desde os tempos em que ainda éramos casados e ele descarregava as frustrações em portas e paredes, nunca em mim… até ao dia em que foi.
— Não é nada entre ti e ela! — respondi, sentindo a voz embargar. — Valentina vem comigo agora.
Ele riu-se, um riso amargo. — Achas mesmo que podes decidir tudo? O tribunal deu-me este fim de semana. Não te metas onde não és chamada.
Valentina olhou para mim com olhos suplicantes. Senti-me impotente, esmagada por leis e papéis que nunca protegeram realmente quem mais precisa. Mas naquele momento, só havia uma escolha.
— Valentina, vem cá — disse eu, ajoelhando-me para ficar ao nível dela.
Ela correu para mim e abraçou-me com tanta força que quase me tirou o ar. Senti o corpo dela a tremer.
— Mãe, ele gritou comigo… partiu o meu boneco… — soluçou ela.
O Rui avançou um passo. — Vais ver que ainda te arrependes disto, Nora.
Peguei na Valentina ao colo e saí dali sem olhar para trás. No carro, ela chorava baixinho. Eu tentava manter as mãos firmes no volante, mas as lágrimas também me caíam.
Chegámos a casa já noite cerrada. Dei-lhe banho, vesti-lhe o pijama com os unicórnios que ela tanto gosta e sentei-me ao lado dela na cama.
— Mãe, porque é que o pai é assim? — perguntou ela, voz frágil.
Como explicar a uma criança que há dores antigas que nunca saram? Que há adultos que não sabem amar sem ferir?
— O pai está triste e zangado com coisas dele… mas tu não tens culpa de nada — disse eu, tentando acreditar nas minhas próprias palavras.
Naquela noite não dormi. Fiquei sentada no chão do quarto dela, a ouvir-lhe a respiração pesada. A cada suspiro dela, sentia o peso do mundo nos ombros.
No dia seguinte liguei à minha mãe. Ela sempre foi o meu porto seguro, mesmo quando não concordava com as minhas escolhas.
— Nora, tens de fazer alguma coisa — disse ela. — Não podes deixar a Valentina voltar para aquela casa.
— E faço o quê? O tribunal já decidiu…
— Vais à polícia! Vais ao tribunal outra vez! Faz barulho! — insistiu ela.
Mas eu sabia como era difícil ser ouvida neste país quando se é mulher e mãe. Quantas vezes vi notícias de mães desesperadas, ignoradas pelas autoridades? Quantas vezes ouvi vizinhas dizerem “isso são coisas deles”?
Mesmo assim fui à esquadra. Contei tudo à agente de serviço: os gritos, o boneco rasgado, o medo da Valentina. Ela olhou para mim com pena nos olhos.
— Senhora Nora, compreendo… mas sem provas físicas ou testemunhas é complicado. O melhor é falar com o seu advogado e pedir uma reavaliação da guarda.
Saí dali mais revoltada do que entrei. Liguei ao meu advogado, o Dr. António Silva, um homem sério mas empático.
— Nora, isto vai ser uma luta longa… mas não estás sozinha. Vamos pedir uma avaliação psicológica à Valentina e tentar suspender as visitas até haver conclusões.
Os dias seguintes foram um inferno de ansiedade. O Rui mandava mensagens ameaçadoras:
“Se me tiras a miúda nunca mais te deixo em paz!”
“És uma egoísta!”
“A Valentina precisa do pai!”
Eu tremia cada vez que o telemóvel vibrava. Tinha medo de sair à rua sozinha. Tinha medo de tudo.
Valentina começou a ter pesadelos. Acordava a meio da noite a chorar:
— Mãe, ele vai vir buscar-me?
Abraçava-a com força e prometia que nada lhe ia acontecer. Mas eu própria não acreditava nisso.
A escola chamou-me passado uma semana. A professora da Valentina queria falar comigo.
— Dona Nora… reparei que a Valentina anda muito calada ultimamente. Desenhou hoje um boneco triste com lágrimas… disse que era ela quando está com o pai.
Senti um nó na garganta. A professora prometeu ajudar no que pudesse.
O processo judicial arrastou-se durante meses. Avaliações psicológicas, entrevistas sociais, relatórios intermináveis. Cada vez que via o Rui no tribunal sentia-me pequena e vulnerável. Ele olhava para mim com ódio puro.
A família dele também me atacava:
— És uma exagerada! O Rui nunca faria mal à filha!
— Só queres afastar o pai da miúda porque és amarga!
Até alguns amigos começaram a afastar-se. “Não te metas nisso”, diziam-me baixinho no café do bairro. “Essas coisas só trazem problemas…”
Mas eu não podia desistir da minha filha.
Uma noite ouvi um barulho na varanda. Fui ver e vi um papel amarrotado preso à porta:
“Se continuares assim vais arrepender-te!”
Chamei a polícia outra vez. Disseram-me para ter cuidado mas nada podiam fazer sem provas claras de ameaça direta.
Senti-me sozinha contra o mundo inteiro.
Valentina foi chamada ao psicólogo do tribunal. Quando voltou estava pálida e calada.
— Mãe… tive medo de dizer tudo… E se ele fica mais zangado?
Abracei-a e disse-lhe que era corajosa só por tentar explicar o que sentia.
Finalmente chegou o dia da decisão judicial. Sentei-me na sala do tribunal com as mãos geladas e o coração aos pulos.
O juiz leu os relatórios em silêncio durante minutos que pareceram horas.
— Face aos indícios apresentados e ao bem-estar da menor, suspendo provisoriamente as visitas do pai até nova avaliação — declarou ele finalmente.
Senti as pernas fraquejarem de alívio e medo ao mesmo tempo. Sabia que isto não era o fim da luta, mas pelo menos Valentina estava segura por agora.
Quando saímos do tribunal ela olhou para mim:
— Agora posso dormir sem medo?
Sorri-lhe com lágrimas nos olhos:
— Podes sim, meu amor…
Hoje escrevo esta história porque sei que há muitas Noras e Valentinas em Portugal. Mulheres silenciadas por sistemas lentos e famílias divididas por dores antigas. Pergunto-me tantas vezes: até quando vamos aceitar isto como normal? Até quando vamos fechar os olhos ao sofrimento dos nossos filhos?
E vocês? O que fariam se estivessem no meu lugar? Quantas mães já sentiram este desespero silencioso?