Um Almoço Inesperado: Entre o Passado e o Presente, Dois Destinos Cruzam-se

— Desculpe, posso sentar-me aqui? — perguntei, a voz trémula, enquanto olhava para a senhora de cabelos brancos sentada junto à janela do Café Central. O sol de inverno entrava tímido, desenhando sombras no tampo de mármore. Ela ergueu os olhos, primeiro desconfiada, depois com um leve aceno de cabeça.

— Faça favor, rapaz. Isto está vazio como sempre — respondeu, ajeitando o xaile azul sobre os ombros.

Sentei-me, sentindo o olhar curioso dos outros clientes habituais. Não era comum ver um jovem como eu, de vinte e poucos anos, a partilhar mesa com alguém da idade da Dona Amélia. Mas naquele dia, depois de mais uma discussão em casa com o meu pai sobre o futuro — ou a falta dele — precisava de silêncio e talvez de alguém que não me julgasse.

— O meu nome é Miguel — disse, tentando sorrir.

Ela olhou-me de lado, como quem avalia um estranho na sua terra.

— Amélia. Mas toda a gente me chama Dona Amélia. O que fazes aqui sozinho num sábado?

Hesitei. Não queria falar da minha família, do curso de Engenharia que abandonei sem coragem de contar à minha mãe, do emprego precário no supermercado. Mas havia algo nos olhos dela, uma tristeza antiga, que me fez baixar as defesas.

— Fugi de casa por umas horas. Às vezes parece que ninguém me entende. — Sorri sem graça. — E a senhora?

Ela suspirou fundo.

— O meu marido morreu há três anos. Os meus filhos vivem longe. Às vezes venho aqui só para ouvir vozes. Para não esquecer como é estar viva.

As palavras dela ficaram a pairar entre nós. O empregado trouxe dois cafés e um bolo de arroz para cada um. Ela partiu o seu ao meio e empurrou metade para mim.

— Partilhar faz bem ao coração — disse, com um brilho maroto nos olhos.

Rimo-nos. Pela primeira vez em semanas senti-me leve.

A conversa fluiu. Falámos do tempo em que ela era professora primária na aldeia vizinha, das festas populares, das cartas que trocava com o marido quando ele estava na tropa em Angola. Eu contei-lhe dos meus sonhos adiados: ser músico, viajar pelo mundo, escrever um livro sobre as histórias da minha terra.

— Sabes, Miguel — disse ela, pousando a mão enrugada sobre a minha — às vezes a vida não corre como planeamos. Mas há sempre tempo para recomeçar.

Nesse momento entrou no café a minha mãe, aflita. Olhou para mim e para Dona Amélia com surpresa.

— Miguel! Estás aqui? Andamos à tua procura! — exclamou, quase a chorar.

Levantei-me de repente, sentindo-me culpado e infantil.

— Desculpa mãe… só precisava de pensar.

Dona Amélia levantou-se também.

— Não ralhe com o rapaz, D. Teresa. Ele só precisava de companhia. E eu também.

A minha mãe olhou para Dona Amélia com respeito e ternura.

— Sabe… conheci-a quando era pequena. A senhora dava-me rebuçados à porta da escola — disse minha mãe, sorrindo.

Ficámos ali os três, presos entre passado e presente. A minha mãe sentou-se connosco e pediu um chá. Pela primeira vez em muito tempo falámos sem pressa nem acusações: das saudades do meu avô, das dificuldades do dia-a-dia, dos sonhos que cada um guardava em silêncio.

No final desse almoço improvisado, Dona Amélia olhou para mim:

— Prometes que voltas cá para me contar como vai a tua vida?

Prometi. E cumpri. Durante meses fui ao café todos os sábados. Levava-lhe flores do campo ou um livro novo. Ela ensinava-me receitas antigas e mostrava-me fotografias amareladas dos bailes de antigamente.

Mas nem tudo era fácil. O meu pai não entendia aquela amizade improvável.

— Miguel, não tens amigos da tua idade? — perguntava ele ao jantar, num tom entre o trocista e o preocupado.

— Tenho… mas às vezes sinto-me mais compreendido pela Dona Amélia do que por eles — respondia eu, tentando não levantar discussões.

O meu pai resmungava qualquer coisa sobre juventude perdida e voltava ao telejornal.

Uma tarde encontrei Dona Amélia mais calada do que o costume. Olhava pela janela com os olhos húmidos.

— Sente-se bem? — perguntei.

Ela demorou a responder.

— Recebi uma carta do meu filho mais novo. Diz que não pode vir no Natal… outra vez. — A voz dela tremeu. — Sinto falta deles… mas já não sei se ainda faço falta a alguém.

Senti uma raiva surda contra aquela família ausente que não via o tesouro que tinham ali. Peguei-lhe na mão.

— Faz falta a mim, Dona Amélia. E à minha mãe também. Venha passar o Natal connosco este ano.

Ela sorriu entre lágrimas.

Na noite de Natal, Dona Amélia sentou-se à nossa mesa como se sempre tivesse pertencido à família. O meu pai olhou-a com desconfiança no início, mas acabou por lhe servir vinho do Porto e pedir conselhos sobre como fazer arroz doce como antigamente.

Entre risos e histórias partilhadas percebi que aquela solidão que me sufocava estava a desaparecer. Não porque os problemas tivessem acabado — ainda tinha contas por pagar e sonhos por cumprir — mas porque já não me sentia sozinho no mundo.

No verão seguinte Dona Amélia adoeceu. Passei a visitá-la todos os dias no hospital de Santa Maria. Levava-lhe flores frescas e lia-lhe capítulos do livro que finalmente comecei a escrever: as histórias dela misturadas com as minhas memórias e esperanças.

Na última tarde antes de partir, ela apertou-me a mão com força surpreendente para alguém tão frágil:

— Obrigada por me devolveres a juventude nestes meses… Nunca deixes de procurar quem te entende, Miguel. Mesmo quando parecer impossível.

Chorei como uma criança quando ela se foi. Mas nunca mais me senti perdido como antes.

Hoje passo pelo Café Central e vejo outros jovens sozinhos nas mesas junto à janela. Pergunto-me: quantas histórias ficam por viver porque temos medo de falar com um estranho? Quantas vidas podíamos mudar — ou salvar — com um simples gesto?