Ultimato na Casa da Avó: Entre Sonhos e Despedidas
— Ou cumpres o que te pedi, ou sais já desta casa! — A voz da minha mãe, Helena, cortou o silêncio da sala como uma faca afiada. O relógio antigo da avó Maria marcava quase meia-noite, mas ninguém dormia naquela casa. Eu, Catarina, sentada no sofá com as mãos trémulas, sentia o coração a bater tão forte que temi que todos pudessem ouvir.
O Rui, meu marido, olhava para mim em silêncio, os olhos castanhos cheios de preocupação. Ele sempre foi o meu porto seguro, mas agora parecia tão perdido quanto eu. A avó Maria, sentada na sua poltrona junto à lareira, apertava o terço entre os dedos, murmurando preces baixinho. O cheiro a sopa de legumes ainda pairava no ar, misturado com a tensão que se podia cortar à faca.
— Mãe, por favor… — tentei argumentar, mas ela levantou a mão, impaciente.
— Não há mais conversas! Já te disse: ou arranjas um emprego a tempo inteiro e ajudas nas despesas, ou vais-te embora. Não vou sustentar dois adultos e ainda por cima com ideias de trazer crianças para esta casa! — Helena nunca foi mulher de meias palavras. Sempre trabalhou duro como enfermeira no hospital de Setúbal e esperava o mesmo de mim.
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Desde pequena que sonhava com uma família grande. Cresci rodeada de tios e primos nas festas de Natal e nos almoços de domingo. Quando casei com o Rui, partilhámos esse sonho: ter muitos filhos, uma casa cheia de risos e confusão boa. Mas a vida não foi fácil. O Rui perdeu o emprego na fábrica há seis meses e eu fazia uns biscates como babysitter e ajudava a avó Maria em casa. Mudámo-nos para aqui para poupar algum dinheiro até conseguirmos reerguer-nos.
Agora, tudo parecia desmoronar-se.
— Catarina… — sussurrou o Rui, pousando a mão na minha perna. — Talvez devêssemos procurar outro sítio…
— E onde? — atirei, num sussurro desesperado. — Com que dinheiro? Não temos nada!
A avó Maria olhou para mim com ternura.
— Minha menina, esta casa é tua tanto quanto é minha. Mas sabes como é a tua mãe…
Helena bufou.
— Não me venham com sentimentalismos! Eu é que pago as contas desta casa! E não vou ver a minha filha a desperdiçar a vida à espera de milagres. Achas mesmo que é altura de pensares em filhos? Com que vais alimentá-los? Com sonhos?
As palavras dela doeram mais do que qualquer bofetada. Senti-me pequena, inútil. Mas também zangada. Porque é que ela nunca acreditou em mim? Porque é que tudo tinha de ser sempre à maneira dela?
Levantei-me de rompante.
— Mãe, eu não sou tu! Não quero viver só para trabalhar e pagar contas! Quero uma família! Quero ser feliz!
Ela riu-se, amarga.
— Felicidade não paga renda nem põe comida na mesa! Olha à tua volta! Achas que isto é vida?
O Rui tentou intervir.
— Dona Helena, eu estou à procura de trabalho todos os dias. Só precisamos de mais algum tempo…
Ela virou-se para ele com frieza.
— Tempo? Já tiveram tempo demais! Ou mudam de vida ou mudam de casa.
A avó Maria chorava baixinho. Senti-me dividida entre a lealdade à minha mãe e o amor pelo Rui e pelo futuro que sonhámos juntos.
Nessa noite não dormi. Fiquei sentada na varanda a olhar para as luzes distantes da cidade. Lembrei-me dos verões passados ali, das brincadeiras no quintal, dos bolos da avó e das histórias contadas à lareira. Como podia perder tudo aquilo?
No dia seguinte, tentei falar com a minha mãe calmamente.
— Mãe… eu percebo que estejas cansada. Mas nós só precisamos de mais uns meses. O Rui tem uma entrevista amanhã e eu posso procurar outro trabalho…
Ela abanou a cabeça.
— Catarina, eu só quero o melhor para ti. Mas não posso ver-te afundar assim. Se não mudas agora, nunca mais mudas.
— E se eu engravidar? Vais pôr-me na rua?
Ela hesitou por um segundo.
— Não sei… Talvez seja isso mesmo que precisas para cresceres.
As palavras dela ficaram a ecoar-me na cabeça durante dias. O Rui foi à entrevista mas não ficou com o trabalho. Eu procurei em todo o lado: cafés, supermercados, limpezas. Nada fixo, nada suficiente.
As discussões tornaram-se diárias. A avó Maria tentava apaziguar-nos mas estava cada vez mais fraca. Um dia desmaiou na cozinha e tivemos de levá-la ao hospital. Foi aí que percebi: estávamos todos a sofrer com aquela tensão.
Numa noite chuvosa, sentei-me com o Rui no quarto pequeno onde dormíamos desde que ali chegámos.
— Catarina… não podemos continuar assim. Isto está a destruir-nos — disse ele, os olhos vermelhos de cansaço.
— Eu sei… mas tenho tanto medo de perder tudo…
Ele abraçou-me forte.
— O importante somos nós os dois. Vamos encontrar uma solução juntos.
No dia seguinte, tomei uma decisão difícil: fui falar com a minha mãe.
— Mãe… vamos sair daqui. Não quero mais discussões nem mágoas. Vamos tentar sozinhos.
Ela olhou para mim com surpresa e talvez um pouco de orgulho triste.
— Vais conseguir, filha. Eu sei que sim.
A avó Maria chorou quando lhe dissemos que íamos embora. Prometi visitá-la todas as semanas e ajudá-la sempre que pudesse.
Arrumámos as poucas coisas que tínhamos e fomos viver para um quarto alugado numa pensão barata no Barreiro. Foi duro. Houve dias em que só tínhamos pão e leite para comer. Mas também houve momentos bons: risos partilhados nas dificuldades, sonhos renovados nas pequenas vitórias.
O Rui acabou por arranjar trabalho numa oficina e eu consegui um part-time numa pastelaria. Não era muito mas era nosso. E quando finalmente descobri que estava grávida, chorei de alegria e medo ao mesmo tempo.
A minha mãe veio visitar-nos no dia em que nasceu o nosso filho, Tomás. Trouxe flores e um sorriso tímido.
— Desculpa se fui dura contigo — disse ela, segurando o neto nos braços pela primeira vez.
— Fizeste o que achaste melhor — respondi, sentindo finalmente paz no coração.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci naquele tempo difícil. Aprendi que às vezes é preciso perder quase tudo para descobrir o que realmente importa.
Será que todas as mães amam assim — com dureza e medo? Ou será que só aprendemos a ser mães quando deixamos os nossos filhos voar? O que vocês acham?