Tudo Por Ela: O Sacrifício de Uma Filha
— Não podes sair agora, Inês! Preciso de ti! — gritava a minha mãe, a voz rouca e trémula, enquanto eu olhava pela janela o grupo de amigos a rir na rua. O cheiro a sopa de legumes pairava no ar, misturado com o odor dos medicamentos que se acumulavam na mesa da sala. Tinha dezassete anos e sentia o peso do mundo nos ombros.
Desde que o meu pai nos deixou, quando eu era ainda uma criança, a minha mãe nunca mais foi a mesma. A doença veio cedo, primeiro as dores nas articulações, depois o cansaço constante, até que ficou presa àquela cadeira de rodas que parecia uma extensão do seu corpo. O meu irmão, Miguel, era já adulto e saiu de casa assim que pôde. Eu fiquei. Fiquei porque não sabia ser de outra forma. Fiquei porque ela precisava de mim.
Os anos passaram e os meus sonhos foram ficando para trás. Queria estudar Belas-Artes em Lisboa, pintar quadros enormes e perder-me nas cores. Em vez disso, aprendi a medir doses de insulina, a trocar pensos, a lidar com crises de raiva e desespero. A minha mãe tinha dias bons e dias maus. Nos maus, gritava comigo, chamava-me ingrata por querer sair, por querer viver. Nos bons, chorava baixinho e pedia desculpa.
— Inês, tu és tudo o que tenho — dizia-me muitas vezes, agarrando-me a mão com força. — Não me deixes sozinha.
E eu não deixei. Recusei convites para festas, adiei namoros, perdi amigos. A minha vida era um ciclo de cuidados e rotinas. Só Miguel aparecia de vez em quando, sempre apressado, sempre com desculpas: “O trabalho não me deixa”, “A Rita está grávida”, “Depois venho com mais tempo”. A minha mãe sorria-lhe sempre, os olhos brilhantes de orgulho por aquele filho distante.
Quando ela piorou, os médicos disseram que era uma questão de tempo. Passei noites em claro ao lado da sua cama, ouvindo-lhe a respiração pesada. Lembro-me do último dia como se fosse agora: o sol entrava pela janela, desenhando padrões no chão. Ela olhou para mim e murmurou:
— Desculpa…
Depois fechou os olhos e nunca mais os abriu.
O funeral foi pequeno. Miguel chegou atrasado, de fato escuro e cara fechada. Não chorou. Eu chorei tudo o que tinha para chorar ali mesmo, junto à campa fria.
Dias depois, sentámo-nos os dois na sala da casa onde cresci. O testamento estava em cima da mesa. O advogado leu em voz baixa: tudo ficava para Miguel — a casa, as poupanças, até as jóias da avó. Para mim, uma carta.
Abri-a com mãos trémulas:
“Minha querida Inês,
Sei que foste tu quem esteve sempre ao meu lado. Mas quero que sigas o teu caminho sem amarras. Miguel precisa de estabilidade para a família dele. Tu és forte e vais encontrar o teu lugar no mundo.
Com amor,
Mãe”
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como podia ela fazer-me isto? Como podia dar tudo ao filho ausente e deixar-me apenas palavras? Miguel tentou justificar:
— Sabes como ela era… Queria proteger-te.
— Proteger-me? — gritei-lhe. — E quem me protegeu todos estes anos?
A partir desse dia deixei de falar com ele. Vagueei pela cidade sem rumo durante semanas. Dormi em sofás de amigos, trabalhei em cafés para sobreviver. O vazio dentro de mim era maior do que alguma vez imaginei possível.
As pessoas diziam-me para perdoar, para seguir em frente. Mas como se perdoa uma mãe que nos pede tudo e depois nos deixa sem nada? Como se recomeça quando tudo o que conhecíamos desaparece?
Um dia encontrei uma tela velha num contentor do lixo. Levei-a para o quarto minúsculo onde vivia e comecei a pintar. As cores explodiram sob os meus dedos: raiva vermelha, tristeza azul-escura, esperança amarela tímida no canto da tela. Chorei enquanto pintava, chorei tudo o que não tinha chorado antes.
Com o tempo arranjei um emprego numa loja de arte. Conheci pessoas novas, fiz amigos que não sabiam nada do meu passado. Mas à noite, sozinha no quarto, voltava sempre à mesma pergunta: será que o amor deve ser sempre incondicional? Será justo sacrificar tudo por alguém que não vê o nosso valor?
Hoje olho para trás e vejo uma jovem perdida entre o dever e o desejo de viver. Pergunto-me se teria feito diferente se soubesse o fim da história. Talvez não.
E vocês? O que fariam no meu lugar? O amor deve mesmo ser sempre um sacrifício silencioso?