Tudo Nas Minhas Costas: A História de Uma Filha Que Sempre Teve de Ser Forte
— Não podes pedir ao Rui para vir cá hoje? — perguntou a minha mãe, com aquela voz cansada que se arrasta pela casa desde que ficou doente.
Olhei para ela, sentada no sofá, as mãos trémulas a tentar segurar a chávena de chá. O relógio marcava sete da manhã e eu já estava atrasada para o trabalho. O cheiro do café misturava-se com o odor dos medicamentos espalhados pela mesa da sala. Respirei fundo, tentando não deixar transparecer o cansaço.
— Mãe, já sabes que o Rui tem muito trabalho. — A minha voz saiu mais fria do que queria. — Eu vou passar pelo supermercado depois do trabalho e trago tudo o que precisas.
Ela baixou os olhos, como se a culpa fosse dela. Mas eu sabia que não era. Ou talvez fosse. Ou talvez fosse minha. Não sei. Só sei que, desde pequena, sempre fui eu a resolver tudo. Quando o Rui partiu um braço, foi a mim que chamaram para ir buscar gelo. Quando a mãe chorava na cozinha porque o pai tinha chegado tarde outra vez, era eu que lhe fazia companhia em silêncio. O Rui sempre foi o menino dela, o filho especial, aquele que precisava de proteção. Eu era a filha forte, aquela que não precisava de nada.
A campainha tocou e estremeci. Era o senhor António, o vizinho do lado, que vinha perguntar se estava tudo bem com a minha mãe. Sorri-lhe, agradeci-lhe a preocupação e fechei a porta rapidamente. Não queria conversa. Não queria ouvir mais ninguém a dizer “coitadinha da tua mãe” ou “és uma filha tão dedicada”. Ninguém sabia o peso que era ser sempre a dedicada.
No trabalho, mal conseguia concentrar-me. A minha chefe, Dona Teresa, chamou-me ao gabinete.
— Mariana, tens andado distraída. Está tudo bem em casa?
Quis responder que não, que nada estava bem, que sentia o mundo inteiro nas minhas costas. Mas limitei-me a sorrir e dizer:
— Está tudo bem, só um pouco cansada.
Ela olhou-me com aquele olhar de quem percebe mais do que devia e disse:
— Se precisares de sair mais cedo algum dia, avisa.
Agradeci e voltei à secretária. O telefone tocou: era a minha mãe. Atendi de imediato.
— Mariana, desculpa estar sempre a ligar… mas não encontro os comprimidos para o coração.
Fechei os olhos e contei até dez antes de responder:
— Mãe, estão na gaveta da mesa de cabeceira, ao lado do livro do Padre António Vieira.
Ouvi-a suspirar de alívio.
— Obrigada, filha… és mesmo um anjo.
Desliguei e senti uma lágrima escorrer-me pela cara. Não queria ser anjo nenhum. Queria ser só filha. Queria poder falhar, poder dizer “hoje não consigo”.
À noite, depois de um dia interminável, cheguei a casa exausta. O Rui ainda não tinha aparecido nem telefonado. A mãe estava sentada à janela, a olhar para a rua escura.
— O Rui disse que vinha hoje — murmurou ela.
— Deve ter-se atrasado — menti.
Fui à cozinha preparar-lhe uma sopa. Enquanto mexia a panela, ouvi-a tossir na sala. Senti raiva do Rui. Senti raiva da minha mãe por ainda esperar por ele como se fosse um milagre. Senti raiva de mim por não conseguir ser indiferente.
Quando lhe levei a sopa, ela sorriu-me com ternura.
— Sabes, Mariana… às vezes penso que não te agradeço o suficiente.
Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão.
— Não faz mal, mãe…
Mas fazia mal. Fazia muito mal. Porque eu precisava de ouvir um “obrigada”, precisava de sentir que alguém via o esforço invisível de quem nunca pode cair.
Nessa noite liguei ao Rui.
— Olha lá, achas que podes vir cá amanhã? A mãe está cada vez pior e eu não consigo fazer tudo sozinha.
Do outro lado ouvi um suspiro impaciente.
— Mariana, tu sabes como é… tenho reuniões até tarde… e depois tenho de levar os miúdos ao futebol…
— Rui, ela é tua mãe também! — gritei antes de me conseguir controlar.
Houve silêncio do outro lado da linha.
— Eu sei… desculpa… vou tentar passar no fim de semana.
Desliguei sem dizer adeus. Senti-me vazia. Fui à varanda respirar ar frio e perguntei-me quantas vezes mais teria de ser eu a segurar tudo sozinha.
Os dias passaram todos iguais: trabalho-casa-mãe-medicamentos-compras-telefonemas ao Rui-silêncio-cansaço-culpa. Às vezes sonhava em fugir para longe, para um sítio onde ninguém me conhecesse nem precisasse de mim. Mas depois via a minha mãe adormecida no sofá e sentia uma ternura imensa misturada com uma tristeza funda.
Uma tarde encontrei uma carta antiga da minha mãe para o meu pai, escrita quando ele ainda era vivo:
“Querido Manuel,
Sinto-me tão sozinha às vezes… Os miúdos crescem depressa e tenho medo de não lhes dar tudo o que precisam. O Rui é tão sensível… A Mariana é forte como uma rocha, mas será justo pedir-lhe tanto?”
Chorei ao ler aquelas palavras amarelecidas pelo tempo. Afinal ela sabia. Sempre soube.
No domingo seguinte, o Rui apareceu finalmente com os filhos pequenos aos gritos pela casa. A minha mãe iluminou-se toda ao vê-los entrar.
— Oh Rui! Que surpresa boa!
Ele ficou meia hora e foi-se embora apressado porque “tinha compromissos”. Quando fechou a porta atrás dele, vi nos olhos da minha mãe um brilho triste.
— Ele está sempre tão ocupado… — murmurou ela.
Sentei-me ao lado dela e abracei-a em silêncio. Não havia palavras para aquela solidão partilhada entre nós duas.
Nessa noite sonhei com o passado: eu e o Rui crianças no quintal da casa dos avós em Santarém; a mãe a chamar-nos para jantar; o pai a rir-se alto na sala; tudo tão simples antes da vida nos separar em papéis diferentes — ele o protegido, eu a protetora.
Os meses passaram e a doença da minha mãe piorou. Passei a dormir em casa dela quase todas as noites. O meu namorado acabou por se afastar — “não aguento ver-te sempre tão triste”, disse-me antes de desaparecer da minha vida como se nunca tivesse existido.
No hospital, quando internaram finalmente a minha mãe depois de uma crise grave, sentei-me no corredor gelado e liguei ao Rui:
— Ela está muito mal… devias vir cá agora.
Desta vez ele veio. Chegou pálido e calado, sentou-se ao meu lado sem dizer nada durante muito tempo. Depois olhou para mim com olhos vermelhos:
— Desculpa… nunca pensei que fosse tão difícil…
Abracei-o sem rancor porque naquele momento percebi que ele também era só um filho perdido no meio das suas próprias limitações.
A minha mãe partiu numa manhã fria de fevereiro. Fiquei sozinha na casa vazia cheia dos cheiros dela: lavanda nos lençóis, café na cozinha, remédios na mesa-de-cabeceira. O Rui voltou à sua vida apressada; eu fiquei com as memórias e com as perguntas sem resposta.
Agora escrevo esta história sentada no sofá onde tantas vezes vi a minha mãe adormecer à espera do filho ausente ou da filha incansável. Pergunto-me: quantas Marianas há por aí? Quantos filhos invisíveis seguram famílias inteiras sem nunca poderem cair? Até onde vai o amor antes de se transformar em cansaço?