“Tu não fazes nada o dia todo!” – A minha luta por compreensão e respeito durante a licença de maternidade
— Outra vez sopa de legumes? — perguntou o Ricardo, largando a colher na mesa com um suspiro pesado. O som ecoou pela cozinha, misturando-se com o choro do Tomás, que acordara da sesta antes do tempo. Senti o calor subir-me ao rosto, mas engoli em seco. Não era só sobre a sopa. Nunca era só sobre a sopa.
— Desculpa, não tive tempo para mais — respondi, tentando manter a voz calma enquanto embalava o Tomás ao colo. Ele continuava a chorar, esfregando os olhos pequeninos. — O Tomás esteve muito irrequieto hoje.
Ricardo olhou para mim, cansado. — Mas tu estás em casa o dia todo, Mariana. Não percebo como é que não consegues fazer mais nada. Eu chego do trabalho e está tudo igual.
Aquelas palavras caíram-me como pedras no peito. Quis gritar, quis atirar-lhe tudo à cara: as fraldas sujas, as horas sem dormir, os choros intermináveis, o medo constante de falhar. Mas limitei-me a olhar para ele, sentindo-me cada vez mais pequena.
O Tomás acalmou-se por fim, adormecendo no meu ombro. Fui deitá-lo no berço e fechei a porta do quarto devagarinho. Encostei-me à parede do corredor e deixei-me deslizar até ao chão. Senti as lágrimas quentes escorrerem-me pelo rosto. Não era só cansaço físico; era um cansaço da alma, uma solidão que me esmagava todos os dias.
Lembrei-me de quando engravidei. O Ricardo ficou radiante, a família dele fez uma festa enorme. Toda a gente dizia que eu ia adorar ficar em casa com o bebé, que era um privilégio poder acompanhar cada momento. Mas ninguém me avisou do vazio que se instala quando passas dias inteiros sem falar com adultos, quando o teu mundo se resume a mamadas, fraldas e choros.
A minha mãe ligava-me todos os dias, mas só para perguntar se o Tomás estava bem. Nunca perguntava por mim. As amigas afastaram-se; algumas porque não tinham filhos e não percebiam, outras porque estavam demasiado ocupadas com as suas próprias rotinas.
Nessa noite, depois de deitar o Tomás outra vez, sentei-me no sofá ao lado do Ricardo. Ele estava colado ao telemóvel, a ver vídeos sem som.
— Ricardo… — comecei, hesitante. — Preciso de falar contigo.
Ele olhou para mim de soslaio, impaciente.
— O que foi agora?
Respirei fundo.
— Sinto-me sozinha. Sinto que não vês tudo o que faço aqui em casa. Não é só ficar sentada no sofá à espera que o tempo passe…
Ele bufou.
— Mariana, eu trabalho oito horas por dia! Chego a casa cansado e ainda tenho de ouvir isto?
— Não estou a dizer que não trabalhas — respondi, tentando controlar as lágrimas. — Só queria que percebesses que isto também é trabalho. Que eu também estou cansada.
Ele encolheu os ombros e voltou ao telemóvel.
Nessa noite dormi pouco. O Tomás acordou três vezes com cólicas e eu levantei-me sempre sozinha. De manhã, quando o Ricardo saiu para o trabalho, nem se despediu.
Os dias seguintes foram iguais ou piores. Comecei a sentir-me invisível dentro da minha própria casa. O Ricardo chegava sempre maldisposto; eu já nem tentava conversar. A rotina tornou-se sufocante: acordar, dar de mamar, mudar fraldas, tentar arranjar tempo para tomar banho ou comer qualquer coisa rápida antes que o Tomás acordasse outra vez.
Uma tarde, depois de uma noite particularmente difícil, decidi sair com o Tomás para apanhar ar. Fui ao parque perto de casa e sentei-me num banco ao sol. Ao meu lado estava uma senhora idosa, a Dona Emília, que costumava ver na mercearia.
— Está cansada, menina Mariana? — perguntou ela com um sorriso compreensivo.
Desatei a chorar ali mesmo. Ela pousou a mão enrugada sobre a minha e deixou-me desabafar. Contei-lhe tudo: o cansaço, a solidão, a sensação de não ser valorizada nem pelo marido nem pela família.
— Sabe, querida — disse ela no fim — quando tive os meus filhos também me senti assim. Mas naquela altura ninguém falava destas coisas. Hoje em dia já se pode falar… E devia falar-se mais! Não tenha vergonha de pedir ajuda.
Voltei para casa um pouco mais leve. Decidi escrever uma carta ao Ricardo; talvez assim ele me ouvisse melhor do que numa conversa cara-a-cara.
Na carta contei-lhe tudo: como me sentia sozinha, como precisava do apoio dele, como desejava que ele visse o esforço diário que era cuidar do nosso filho e manter a casa minimamente arrumada. Pedi-lhe que tentasse passar um dia inteiro comigo em casa para perceber como era realmente.
Deixei a carta em cima da mesa da cozinha antes de ir dormir.
No dia seguinte, quando acordei, encontrei o Ricardo sentado à mesa com um ar estranho. Tinha lido a carta.
— Mariana… — começou ele, hesitante — Eu não fazia ideia…
Olhou para mim com olhos vermelhos e cansados.
— Se quiseres… posso tirar um dia de férias para ficar contigo e ajudar com o Tomás.
Senti um alívio misturado com medo: medo de ele não aguentar um dia inteiro naquela rotina sufocante; medo de ele finalmente perceber tudo aquilo que eu sentia na pele há meses.
Na sexta-feira seguinte ficou em casa comigo. Ao início achou graça: mudou uma fralda entre risos nervosos, tentou dar papa ao Tomás (que acabou por cuspir tudo para cima da camisa dele), embalou-o até adormecer (e ficou com dores nas costas). À hora do almoço já estava exausto; à tarde parecia um fantasma.
Quando finalmente conseguimos sentar-nos no sofá ao fim do dia, ele olhou para mim com uma expressão nova: respeito misturado com culpa.
— Desculpa… — murmurou ele — Fui um idiota. Não fazia ideia do quanto isto custa…
Chorei outra vez; desta vez de alívio.
A partir desse dia as coisas mudaram devagarinho cá em casa. O Ricardo começou a ajudar mais: dava banho ao Tomás à noite, fazia jantar duas vezes por semana (mesmo que fosse só massa com atum), perguntava-me como tinha corrido o meu dia. A minha mãe também começou a ligar para saber como eu estava — talvez porque finalmente tive coragem de lhe dizer que precisava de apoio.
Ainda há dias maus; ainda há momentos em que me sinto sozinha ou desvalorizada. Mas agora sei que posso falar sobre isso sem medo de ser julgada ou ignorada.
Às vezes pergunto-me quantas mulheres portuguesas passam pelo mesmo todos os dias — quantas se sentem invisíveis dentro das suas próprias casas? Quantas têm coragem de pedir ajuda? E vocês… já passaram por isto? Como encontraram compreensão e respeito?