“Tu Não Dás Valor a Nada! Temos de Poupar!” – O Sermão da Minha Mãe a Mim e à Inês

“Tu não dás valor a nada! Temos de poupar!” – a voz da minha mãe ecoava pela cozinha, enquanto eu tentava, em vão, explicar-lhe porque precisava mesmo daqueles ténis novos. A Inês, sentada ao meu lado, revirava os olhos e murmurava qualquer coisa entre dentes. O cheiro do café queimado misturava-se com o nervosismo no ar.

— Mãe, são só uns ténis… Os meus já têm buracos! — tentei argumentar, mostrando-lhe a sola gasta.

— E então? Eu ainda uso meias remendadas! — respondeu ela, levantando o pé para nos mostrar o trabalho de agulha e linha. — Quando fores tu a pagar contas, logo vês!

A Inês bufou. — Não é por causa dos ténis que vamos à falência, mãe.

A minha mãe, Teresa, sempre foi assim. Cresceu numa aldeia perto de Viseu, filha de agricultores que contavam os tostões para comprar pão. O medo da pobreza ficou-lhe entranhado nos ossos, como uma segunda pele. Quando veio para Lisboa estudar enfermagem, jurou que nunca deixaria faltar nada aos filhos. Mas, ironicamente, faltou-nos tanta coisa — não de comida ou abrigo, mas de leveza, de espontaneidade, de pequenos prazeres.

O meu pai, António, era o oposto: sonhador, distraído com as contas, sempre pronto para um gelado ao domingo ou um passeio inesperado à praia. Mas ele trabalhava por turnos e estava pouco em casa. A gestão do lar era da minha mãe — e ela fazia questão de nos lembrar disso todos os dias.

Lembro-me de uma vez, no 9º ano, em que fui convidado para uma viagem de finalistas ao Algarve. Todos os meus amigos iam. Quando lhe pedi autorização (e dinheiro), ela olhou-me como se eu tivesse pedido para ir à lua.

— Achas que o dinheiro cai do céu? — perguntou, com aquele tom frio que me gelava o sangue. — Vais aprender a dar valor às coisas quando fores tu a trabalhar!

Chorei nessa noite. Senti-me humilhado quando tive de inventar desculpas aos meus colegas. A Inês tentou consolar-me:

— Um dia vamos sair daqui e fazer tudo o que ela nunca nos deixou fazer.

Mas os anos passaram e a sombra da minha mãe continuou a pairar sobre nós. Mesmo quando comecei a trabalhar num call center para pagar as minhas coisas, ela controlava cada euro que eu gastava.

— Para quê esse telemóvel novo? O antigo ainda funciona! — dizia ela, sempre que eu tentava dar-me um pequeno luxo.

A Inês rebelou-se mais cedo. Aos 17 anos começou a sair às escondidas, a gastar o pouco dinheiro que tinha em concertos e viagens com amigos. Um dia chegou a casa às quatro da manhã e a minha mãe perdeu completamente o controlo.

— Achas que isto é um hotel? — gritou-lhe. — Enquanto viveres aqui, segues as minhas regras!

A discussão foi tão feia que os vizinhos ouviram. O meu pai tentou intervir:

— Teresa, deixa a miúda viver um bocadinho…

Mas ela não cedeu. A Inês saiu de casa pouco depois, foi viver com uma amiga para um quarto minúsculo em Benfica. Eu fiquei — por medo, por comodismo ou talvez por lealdade à minha mãe.

Os anos seguintes foram uma sucessão de pequenas batalhas: as compras do supermercado (sempre as marcas brancas), as férias (sempre em casa dos avós), os presentes de Natal (sempre úteis: meias, pijamas ou livros escolares). Nunca havia espaço para caprichos ou surpresas.

Quando entrei na faculdade, tentei libertar-me desse peso. Arranjei um part-time numa livraria e comecei a guardar algum dinheiro só para mim. Um dia comprei bilhetes para um concerto dos Ornatos Violeta — banda que adorava desde miúdo. Convidei a Inês e fomos juntos. Foi uma noite mágica: dançámos, cantámos até ficar roucos e sentimos, por algumas horas, que éramos donos do nosso destino.

No regresso a casa, encontrei a minha mãe sentada à mesa da cozinha, com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— O teu pai está no hospital — disse ela, sem me olhar nos olhos. — Teve um enfarte.

O chão fugiu-me dos pés. Corremos para o hospital e passámos lá a noite inteira. O meu pai sobreviveu, mas ficou diferente: mais calado, mais cansado. A minha mãe tornou-se ainda mais controladora depois disso.

— Agora é que temos mesmo de poupar — repetia ela todos os dias. — Não sabemos o dia de amanhã.

A tensão em casa tornou-se insuportável. Eu sentia-me sufocar. Comecei a passar mais tempo fora: no trabalho, na faculdade, em casa da Inês. Ela já tinha arranjado um emprego numa agência de viagens e parecia finalmente feliz.

Um dia sentei-me com a minha mãe na varanda enquanto ela remendava mais um par de meias.

— Mãe… porque é que nunca consegues relaxar? Porque é que tudo tem de ser sempre tão difícil?

Ela pousou a agulha e olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— Porque eu sei o que é passar fome — disse ela baixinho. — Sei o que é ver os pais chorar porque não têm dinheiro para comprar sapatos novos aos filhos. Não quero isso para vocês.

Senti pena dela pela primeira vez. Percebi que todo aquele controlo vinha do medo — medo de perder tudo, medo de falhar connosco.

Mas também percebi outra coisa: eu não queria viver assim. Não queria passar a vida inteira à espera do pior, sem nunca aproveitar o melhor.

Pouco tempo depois arranjei coragem para sair de casa. Fui viver com a Inês e dois amigos para um apartamento pequeno mas cheio de luz e gargalhadas. A minha mãe ficou magoada — durante meses mal me falou ao telefone.

Com o tempo fomos reconstruindo a relação. Aprendi a respeitar os seus medos mas também a impor os meus limites. Hoje tento encontrar um equilíbrio: poupo quando posso, mas não abdico dos pequenos prazeres que dão sentido à vida.

Às vezes pergunto-me: será possível quebrar este ciclo? Conseguiremos algum dia viver sem carregar os medos dos nossos pais? Ou estaremos sempre condenados a repetir as mesmas histórias?

E vocês? Como lidam com as expectativas e medos das vossas famílias? Conseguem encontrar esse equilíbrio entre responsabilidade e felicidade?