Trinta anos juntos, e de repente fiquei sozinha: O relato de uma mulher abandonada
— Não posso mais fingir, Maria. Eu… eu conheci outra pessoa.
As palavras do António ecoaram na sala como um trovão. Senti o chão fugir dos meus pés. Trinta anos de casamento, três filhos criados, tantas noites partilhadas entre lençóis gastos e promessas sussurradas ao ouvido. E agora, ali, entre as paredes da nossa sala de estar, ele dizia-me que ia embora. Não chorei. Não gritei. Fiquei apenas sentada, a olhar para o tapete que comprei no nosso décimo aniversário de casamento, tentando perceber se aquilo era mesmo real.
— Vais deixar-me? — perguntei, a voz embargada.
Ele desviou o olhar, envergonhado. — Não é fácil para mim também. Mas preciso de ser honesto contigo… com todos.
A honestidade dele era uma faca afiada. Pensei nos jantares de domingo com os nossos filhos — a Inês, o Miguel e a Leonor — todos à volta da mesa, a rir das histórias do pai. Pensei nos Natais em casa da minha mãe, nas férias em Vila Nova de Milfontes, nos aniversários em que ele me surpreendia com flores do mercado. Tudo parecia agora uma mentira.
Quando ele saiu pela porta, levando apenas uma mala pequena e o casaco azul-escuro que eu lhe ofereci no último Natal, o silêncio instalou-se na casa. Sentei-me no sofá e chorei até não ter mais lágrimas. O relógio marcava três da manhã quando finalmente adormeci, abraçada à almofada dele.
Os dias seguintes foram um nevoeiro denso. Acordava cedo, fazia café para dois por hábito e só depois percebia que estava sozinha. A casa parecia enorme, fria. Os filhos ligavam-me todos os dias, preocupados.
— Mãe, queres vir jantar cá hoje? — perguntava a Inês.
— Não te esqueças de comer — dizia o Miguel.
A Leonor apareceu em casa sem avisar, trazendo um bolo de laranja e um abraço apertado.
— Ele não merece as tuas lágrimas — sussurrou-me ao ouvido.
Mas eu chorava na mesma. Chorava por mim, por eles, por tudo o que perdemos. E chorava também por António, porque não sabia odiá-lo. Sentia raiva, sim, mas também uma tristeza funda por tudo o que foi e já não seria.
Os vizinhos começaram a reparar na ausência dele. A Dona Emília, do terceiro andar, encontrou-me no elevador e perguntou:
— Então o seu marido anda desaparecido?
Sorri amarelo e disse que estava a trabalhar fora. Não queria ser tema de conversa no prédio inteiro.
As semanas passaram e fui-me habituando à solidão. Comecei a arrumar gavetas antigas, encontrei cartas de amor do António dos primeiros anos — palavras doces escritas à mão, promessas de eternidade. Rasguei-as uma a uma. Senti-me ridícula por ter acreditado tanto tempo.
Um dia, a Inês ligou-me em lágrimas:
— Mãe… o pai apresentou-nos a nova namorada dele. Chama-se Patrícia. Tem quase a minha idade!
O choque atravessou-me como um raio. O António sempre dissera que detestava mulheres mais novas com homens mais velhos. Agora fazia exatamente isso.
— Como é que ele pôde? — gritou a Leonor ao telefone naquela noite. — Como é que ele nos faz isto?
O Miguel ficou calado durante dias. Quando finalmente veio visitar-me, sentou-se à mesa e disse:
— Não quero falar sobre ele. Só quero saber se tu estás bem.
Mas eu não estava bem. Sentia-me traída não só como mulher, mas como mãe e companheira de uma vida inteira. Comecei a duvidar de tudo: teria sido cega? Teria ignorado sinais? Lembrei-me das vezes em que ele chegava tarde do trabalho, das mensagens trocadas às escondidas no telemóvel…
Uma noite, não aguentei mais e liguei-lhe:
— António… Porquê? Porquê agora? Porquê assim?
Ele suspirou do outro lado da linha:
— Maria… Já não era feliz há muito tempo. Tentei… mas não consegui continuar a mentir.
Desliguei antes que ele dissesse mais alguma coisa. Fiquei horas a olhar para o teto do quarto escuro.
Os meses passaram devagar. A solidão tornou-se rotina: almoços sozinha na cozinha silenciosa, idas ao supermercado onde já não comprava iogurtes de morango porque eram os preferidos dele. Os amigos afastaram-se — alguns porque eram amigos do casal e não sabiam como lidar comigo sozinha; outros porque tinham medo do contágio da minha tristeza.
A minha mãe foi das poucas pessoas que nunca me largou:
— Filha, tu és forte. Vais levantar-te outra vez.
Mas eu sentia-me fraca como nunca antes.
No Natal seguinte, os filhos insistiram para fazermos tudo juntos em minha casa. Foi estranho montar a árvore sem o António a reclamar das luzes tortas ou das bolas partidas pelas netas pequenas. Senti falta dele até nos detalhes mais irritantes.
Durante o jantar, a Inês levantou-se e disse:
— Mãe… és tu o nosso porto seguro. Não deixes que ele te roube isso também.
Chorei outra vez — mas desta vez foi diferente: senti uma força nova dentro de mim.
Comecei a sair mais de casa: inscrevi-me num curso de pintura na Junta de Freguesia; fui ao cinema sozinha pela primeira vez; aceitei convites para almoçar com colegas antigas do liceu. Aos poucos, fui recuperando pedaços de mim que estavam perdidos há anos.
Um dia encontrei o António na rua com a Patrícia. Ele tentou sorrir para mim; eu limitei-me a acenar com a cabeça e segui caminho. Pela primeira vez não senti dor — só um vazio tranquilo.
Agora olho para trás e vejo tudo com outros olhos: talvez o nosso casamento já estivesse condenado há muito tempo; talvez eu tenha fechado os olhos à realidade porque tinha medo da solidão; talvez tenha amado mais a ideia de nós do que o homem real ao meu lado.
Hoje durmo sozinha sem medo do silêncio. Aprendi a gostar da minha própria companhia — e isso foi a maior conquista destes meses de tempestade.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem histórias como a minha em silêncio? Quantas têm coragem de recomeçar depois de perderem tudo? Se alguém aí já passou pelo mesmo… como encontraram forças para seguir em frente?