Traição de Sangue – A Guerra Entre Irmãos em Lisboa

— Não podes fazer isto, Inês! — gritei, sentindo a garganta apertada e os olhos a arder. O eco da minha voz perdeu-se nas paredes frias do apartamento da nossa mãe, agora vazio, exceto por nós dois e o cheiro a pó antigo. Inês olhou para mim com uma expressão que nunca lhe tinha visto antes: dura, distante, quase cruel.

— Já chega, Miguel. Não vou discutir mais. O advogado disse que tenho direito à minha parte — respondeu ela, cruzando os braços, como se aquela postura pudesse protegê-la de tudo o que estava prestes a acontecer.

Naquele instante, percebi que tudo tinha mudado. Crescemos juntos neste bairro de Benfica, partilhando segredos e sonhos, rindo das mesmas piadas à mesa da cozinha enquanto a mãe fazia arroz doce. Sempre achei que nada nos separaria. Mas agora, ali estávamos, dois estranhos separados por papéis e números.

A mãe morreu há três meses. O luto ainda me sufocava, mas Inês parecia ter ultrapassado tudo demasiado depressa. Mal o funeral acabou, começou a falar do apartamento: “Temos de decidir o que fazer”, “Não posso esperar muito”, “Preciso do dinheiro”. Eu queria tempo para respirar, para sentir a falta da mãe sem pensar em escrituras ou partilhas.

— Inês, isto não é só um apartamento. É a nossa casa! — tentei argumentar, mas ela desviou o olhar.

— Para ti talvez seja. Para mim é uma oportunidade. Preciso de sair daqui, começar de novo — disse ela, quase num sussurro, mas com uma firmeza que me gelou.

A verdade é que Inês sempre foi diferente de mim. Eu fiquei em Lisboa, perto dos nossos pais, ajudei quando o pai adoeceu e depois quando a mãe começou a esquecer-se das coisas. Ela foi estudar para o Porto e só vinha nas festas. Sempre admirei a sua coragem, mas agora parecia-me egoísmo.

As semanas seguintes foram um inferno. O advogado marcou reuniões atrás de reuniões. Os tios meteram-se pelo meio, cada um com uma opinião diferente: “O Miguel tem razão”, “A Inês precisa do dinheiro”, “A vossa mãe não ia querer isto”. As conversas tornaram-se discussões, as discussões tornaram-se gritos. Uma noite, recebi uma mensagem da Inês: “Vou avançar com o processo judicial. Não me deixas escolha.”

Senti-me traído. Como podia a minha própria irmã fazer-me isto? Passei noites em claro, revendo cada momento da nossa infância: as tardes no Jardim da Estrela, as férias em Sesimbra, as promessas de nunca nos abandonarmos. Agora tudo parecia mentira.

O processo arrastou-se durante meses. Cada carta do tribunal era uma facada. Os vizinhos começaram a comentar: “Os filhos da Dona Teresa andam à guerra”, “É sempre por causa do dinheiro”. Senti vergonha de sair à rua. O meu trabalho sofreu; os meus amigos afastaram-se porque eu já não falava de outra coisa.

No Natal desse ano, tentei reconciliar-me com Inês. Convidei-a para jantar em minha casa. Preparei o bacalhau como a mãe fazia e pus na mesa as velhas taças de cristal. Quando ela chegou, trazia um ar cansado e olheiras profundas.

— Não sei se consigo perdoar-te — disse-lhe assim que nos sentámos.

Ela ficou em silêncio durante um longo momento. Depois pousou os talheres e olhou-me nos olhos:

— Eu também não sei se consigo perdoar-me a mim própria.

Chorámos os dois nessa noite. Mas no dia seguinte, o advogado dela ligou-me: “A sua irmã mantém a proposta.”

O apartamento foi vendido pouco depois. Dividimos o dinheiro como manda a lei. Comprei um pequeno T1 em Alvalade; ela foi viver para Londres com o namorado novo. Não falámos durante quase dois anos.

No silêncio desses meses, tentei reconstruir-me. Fui ao psicólogo, escrevi cartas à mãe que nunca enviei, tentei entender onde errámos os dois. Será que fui demasiado agarrado ao passado? Será que ela estava mesmo assim tão desesperada? Nunca saberei ao certo.

No verão passado, recebi uma mensagem inesperada: “Miguel, vou ser mãe.” O coração bateu mais forte do que esperava. Respondi-lhe: “Parabéns, mana.”

Talvez haja esperança para nós. Talvez um dia consigamos sentar-nos à mesma mesa sem ressentimentos.

Mas pergunto-me: quantas famílias se destroem por causa de uma casa? Quantas vezes deixamos que o orgulho fale mais alto do que o amor? E vocês, já perderam alguém por não conseguirem ceder?