Todos os Sábados, Conduzo Até à Casa dos Meus Sogros Para Construir um Anexo. Descobri Por Acaso Porque o Meu Cunhado Fazia Questão de Ajudar Tanto
— Vais mesmo ficar aí sentado, Miguel? — A voz da minha sogra, Dona Teresa, ecoou pelo quintal, misturando-se com o cheiro a terra molhada e cimento fresco. Eu já estava de joelhos há quase uma hora, a tentar alinhar as tábuas do novo anexo que, supostamente, era para guardar ferramentas mas que, na verdade, parecia ser só mais uma desculpa para nos juntar todos os fins de semana.
Alyssa, a minha mulher, estava ao meu lado, mas claramente preferia estar em qualquer outro sítio. O Rui, o meu cunhado, era o oposto: sempre o primeiro a chegar, sempre com um sorriso largo e uma energia que me irritava. — Miguel, passa-me aí o martelo! — gritou ele do outro lado do terreno. O suor escorria-lhe pela testa, mas parecia feliz. Demasiado feliz.
No início achei que era só vontade de agradar aos pais ou de mostrar serviço. Mas havia algo mais. O Rui nunca gostou particularmente de trabalhos manuais; lembro-me bem das histórias da adolescência dele, sempre a fugir às tarefas lá de casa. Então porque é que agora fazia questão de estar presente todos os sábados?
A rotina era sempre a mesma: acordávamos cedo, metíamos as ferramentas no carro e fazíamo-nos à estrada até ao Montijo. Os sogros recebiam-nos com café forte e pão quente. Depois começava a maratona de trabalho: serrar, pregar, carregar. No fim do dia, recebíamos uns frascos de pickles ou ovos caseiros como agradecimento. Eu fingia um sorriso e pensava no sofá lá de casa.
Mas naquele sábado tudo mudou.
Estava a arrumar umas tábuas no velho barracão quando ouvi vozes baixas. Reconheci logo o tom doce da minha sogra e a voz abafada do Rui. — Não podes continuar assim, Rui — dizia ela. — Isto não vai acabar bem.
— Mãe, eu preciso disto. Preciso mesmo — respondeu ele, quase num sussurro.
Fiquei parado, com o coração a bater forte. Não queria ser apanhado a ouvir conversas alheias, mas as palavras deles colaram-se-me aos ouvidos.
— E se o teu pai descobre? Ou a Alyssa? Ou pior… o Miguel? — insistiu Dona Teresa.
— Eles não vão descobrir — garantiu o Rui. — Eu só preciso de mais algum tempo.
O que é que ele precisava? Tempo para quê? Senti um nó no estômago. Saí dali devagarinho e voltei para junto da Alyssa, mas não consegui tirar aquelas palavras da cabeça.
Durante o almoço tentei observar o Rui. Ele ria-se alto das piadas do sogro, servia vinho a toda a gente e fazia questão de me perguntar se precisava de ajuda com o prato. Mas os olhos dele fugiam sempre dos meus.
À tarde, enquanto todos estavam ocupados a discutir onde ia ficar a porta do anexo, aproveitei para ir buscar mais pregos ao barracão. Foi aí que reparei numa caixa escondida atrás de uns sacos de cimento. Curioso — ou talvez tolo — abri-a.
Lá dentro estavam várias cartas e envelopes abertos. Reconheci logo a letra da minha sogra e… contas bancárias? Faturas? Havia também um maço de notas presas com um elástico velho.
O barulho de passos apressados fez-me gelar. Era o Rui.
— O que estás a fazer? — perguntou ele, com uma voz fria que nunca lhe tinha ouvido.
— Eu… estava só à procura de pregos — balbuciei.
Ele olhou para mim durante uns segundos que pareceram horas. Depois suspirou e fechou a caixa com força.
— Não é nada contigo, Miguel. Esquece o que viste aqui — disse ele, tentando soar calmo mas sem conseguir esconder o tremor nas mãos.
— Rui… estás metido em sarilhos? — arrisquei perguntar.
Ele hesitou antes de responder:
— Não é nada disso. Só estou a tentar ajudar os pais… Eles têm dívidas antigas. O anexo é só uma desculpa para eu vir cá todos os fins de semana e trazer algum dinheiro sem levantar suspeitas. O pai nunca aceitaria ajuda direta. Prefere morrer a admitir que precisa dos filhos.
Fiquei sem palavras. Senti-me pequeno por ter desconfiado dele por motivos tão mesquinhos. Mas também senti raiva: porque é que ninguém me contou nada? Porque é que eu era sempre o último a saber?
Nessa noite, depois do jantar, sentei-me com Alyssa no alpendre enquanto os outros arrumavam a cozinha.
— Sabias disto? — perguntei-lhe baixinho.
Ela olhou para mim surpreendida:
— Do quê?
— Das dívidas dos teus pais. Do Rui vir cá todos os sábados para lhes dar dinheiro às escondidas.
Alyssa ficou pálida.
— Não… Nunca me disseram nada…
O silêncio entre nós foi pesado. De repente tudo fazia sentido: as discussões baixinho entre os sogros, os olhares preocupados da Dona Teresa quando falavam do futuro, o entusiasmo forçado do Rui em ajudar na construção do anexo.
No domingo seguinte voltei ao Montijo com Alyssa. Desta vez fui eu quem sugeriu irmos mais cedo. Queria falar com o sogro cara a cara.
— Senhor António — comecei eu, enquanto ele regava as couves no quintal — se precisar de alguma coisa… sabe que pode contar connosco, não sabe?
Ele olhou-me nos olhos durante um longo momento antes de pousar o regador.
— Agradeço-te muito, Miguel… Mas há coisas que um homem tem de resolver sozinho.
Vi ali um orgulho ferido mas também uma tristeza profunda. Percebi então que as famílias portuguesas são feitas destas pequenas tragédias silenciosas: dívidas escondidas, ajudas disfarçadas de favores, silêncios pesados à mesa do jantar.
Nos meses seguintes continuei a ir ao Montijo todos os sábados. Mas agora já não era só pelo anexo ou pelos ovos caseiros. Era porque percebi que família é isto: carregar juntos o peso das dificuldades mesmo quando ninguém fala delas abertamente.
Às vezes dou por mim a pensar: quantos segredos cabem dentro de uma casa portuguesa? E será que alguma vez conhecemos verdadeiramente aqueles com quem partilhamos a vida?