Todos os Dias a Mesma Receita: Quando é que Basta?

— Outra vez arroz, Zuzana? — A voz do Pedro ecoou pela cozinha, carregada de desdém. Senti o peito apertar-se, as mãos ainda húmidas do vapor da panela. Olhei para o prato dele, fumegante, e depois para o meu, já frio. — Não é arroz, Pedro. É risotto. Fiz com cogumelos frescos, como gostas.

Ele empurrou o prato para a frente, sem sequer provar. — Já te disse que não gosto de comer a mesma coisa todos os dias. Não percebes?

A minha filha, Mariana, olhou-me de soslaio. Tinha 14 anos e já aprendia a calar-se quando o pai falava assim. O meu filho mais novo, Tiago, brincava com o garfo, alheio à tensão. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim, mas engoli-a como tantas vezes antes.

Desde que casei com Pedro, há quase vinte anos, a minha vida tornou-se uma sucessão de tarefas repetidas. Ele sempre foi exigente com a comida — nunca come sobras, nunca aceita um prato aquecido do dia anterior. No início achei graça à sua mania; agora pesa-me como uma pedra ao pescoço.

Lembro-me do primeiro jantar que fiz para ele, ainda namorados. Era um simples bacalhau à Brás, mas ele elogiou tanto que me senti especial. Hoje, qualquer prato é motivo de crítica. — Não tens imaginação nenhuma — disse-me uma vez. — A minha mãe fazia sempre pratos diferentes.

A mãe dele. Dona Amélia. Sempre presente nos nossos jantares de domingo, sempre com um comentário venenoso disfarçado de conselho: — Zuzana, devias experimentar pôr mais salsa. Ou menos sal. Ou cozinhar como se faz em Viseu.

No início tentava agradar-lhe. Lia receitas, via vídeos no YouTube, perguntava às vizinhas truques antigos. Mas nunca era suficiente. Pedro chegava a casa cansado do trabalho e descarregava em mim as frustrações do dia. — O que é isto? Outra vez sopa? — E eu sorria, fingindo que não me magoava.

Com o tempo, deixei de sorrir. Comecei a sentir-me invisível. Os meus dias resumiam-se a listas de compras e panelas ao lume. Mariana crescia calada, Tiago pedia atenção que eu já não tinha para dar.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o jantar — Pedro atirou o prato ao lixo sem sequer provar — fechei-me na casa de banho e chorei baixinho para não acordar as crianças. Olhei-me ao espelho: olheiras fundas, cabelo desgrenhado, pele cansada. Onde estava a Zuzana que sonhava ser professora? Onde estava aquela rapariga cheia de planos?

No dia seguinte acordei cedo para preparar o pequeno-almoço. Pedro já estava na cozinha, a ver as notícias no telemóvel. — Hoje vou chegar tarde — disse sem me olhar nos olhos. — Não faças jantar para mim.

Senti um alívio estranho misturado com culpa. E se aproveitasse para fazer algo só para mim e para os miúdos? Preparei panquecas com chocolate e rimos juntos à mesa, sem medo de críticas.

Mas a trégua durou pouco. No fim-de-semana seguinte, Dona Amélia apareceu sem avisar. — Que desarrumação é esta? — perguntou ao ver brinquedos espalhados na sala. — No meu tempo, uma mulher sabia cuidar da casa e do marido.

Pedro juntou-se ao coro: — A tua mãe tem razão. Ultimamente tens andado distraída.

Senti vontade de gritar: “E eu? Quem cuida de mim?” Mas calei-me outra vez.

As discussões tornaram-se mais frequentes. Mariana começou a chegar mais tarde da escola; Tiago fechava-se no quarto com os jogos. Eu sentia-me cada vez mais sozinha naquela casa cheia de gente.

Um dia, ao regressar das compras, encontrei Pedro sentado à mesa com Dona Amélia e uma vizinha fofoqueira, a D. Lurdes. Falavam baixo mas ouvi o suficiente:

— A Zuzana já não é a mulher que era — dizia Pedro.
— Pois não — concordou Dona Amélia. — Uma mulher tem de saber manter o marido satisfeito.

Entrei na cozinha de rompante e larguei os sacos no chão. — Se têm alguma coisa a dizer sobre mim, digam-me na cara!

O silêncio caiu pesado como chumbo. Pedro levantou-se devagar: — Não faças cenas à frente das visitas.

— Cenas? — ri-me amargamente. — A única cena aqui é eu passar os dias a cozinhar para alguém que nunca está satisfeito!

Dona Amélia abanou a cabeça: — No meu tempo não se falava assim ao marido.

— Pois no seu tempo também não se vivia assim! — respondi, sentindo finalmente a coragem subir-me à garganta.

Nessa noite dormi mal. Ouvia as palavras deles a ecoar na cabeça: “já não és a mulher que eras”… Mas quem sou eu agora?

No dia seguinte decidi fazer diferente. Preparei um jantar simples: sopa e pão caseiro. Quando Pedro chegou e viu a mesa posta, franziu o sobrolho:

— Só isto?

Olhei-o nos olhos pela primeira vez em muito tempo:
— Só isto. Se quiseres mais alguma coisa, podes fazer tu.

Ele ficou calado por uns segundos eternos e depois saiu da cozinha sem dizer palavra.

Mariana aproximou-se devagar:
— Mãe… estás bem?

Abracei-a com força:
— Estou cansada, filha. Mas hoje senti-me viva outra vez.

Nos dias seguintes continuei a simplificar as refeições. Pedro resmungava menos; talvez porque percebeu que eu estava diferente ou talvez porque já não lhe dava tanta importância.

Comecei a sair mais com Mariana e Tiago: passeios no parque, tardes na biblioteca, gelados ao fim da tarde junto ao rio Douro. Redescobri pequenos prazeres esquecidos.

Uma tarde encontrei uma antiga colega da faculdade na rua:
— Zuzana! Ainda dás aulas?

Sorri tristemente:
— Não… deixei tudo quando casei.

Ela olhou-me com compaixão:
— Nunca é tarde para recomeçar.

Aquela frase ficou-me na cabeça durante dias. Comecei a pesquisar cursos online à noite, depois de todos irem dormir. Senti uma esperança tímida crescer dentro de mim.

Pedro percebeu a mudança:
— Andas diferente… O que se passa?

Olhei-o nos olhos:
— Estou cansada desta rotina. Quero voltar a ser eu própria.

Ele riu-se:
— Isso são coisas da tua cabeça.

Mas desta vez não deixei que me abalasse.

Certo domingo recusei ir almoçar à casa da Dona Amélia:
— Hoje vamos passear só nós três — disse aos meus filhos.

Pedro ficou furioso:
— Vais deixar a minha mãe sozinha?

Respondi calmamente:
— Hoje vou cuidar de mim e dos nossos filhos.

Nesse passeio senti-me livre pela primeira vez em anos. Mariana sorriu como há muito não via; Tiago correu pelo parque sem medo nem pressa.

À noite escrevi no meu diário:
“Hoje fui feliz por mim mesma. Não sei se Pedro vai mudar; talvez nem eu mude tanto quanto gostaria… Mas já não quero viver só para agradar aos outros.”

Agora olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas numa rotina que não escolheram? Quantas vezes sacrificamos os nossos sonhos por expectativas alheias? Será possível recomeçar depois de tantos anos esquecida de mim própria?