Tive razão em expulsar a minha sogra de casa depois do que ela fez?
— Não acredito que fizeste isto, mãe! — gritou o Rui, a voz a tremer entre a raiva e a incredulidade. Eu estava de costas para ele, as mãos ainda húmidas da água do lava-loiça, mas o coração já seco de tanto bater. O cheiro do café queimado pairava no ar, misturado com o perfume forte da minha sogra, Dona Lurdes, que naquele momento se sentava no sofá como se fosse dona da casa.
Foi tudo tão rápido. Naquela manhã, acordei com o telefone a tocar insistentemente. Era ela. “Maria, vou aí passar uns dias. Preciso de sair de casa, o teu sogro anda impossível.” Nem me deu tempo de responder. Meia hora depois, já estava à porta, mala na mão, olhar decidido. O Rui ainda dormia, os miúdos a ver desenhos animados na sala. Pensei: “É só por uns dias.”
Mas Dona Lurdes nunca faz nada “só por uns dias”. No primeiro dia, criticou o meu arroz de pato — “A tua mãe não te ensinou a pôr mais sal?” — e reorganizou as panelas na cozinha. No segundo, implicou com a roupa das crianças — “Vais mesmo deixar a Matilde sair assim para a escola? Parece um espantalho!” — e mudou os móveis da sala sem me perguntar nada. No terceiro dia, já estava a dar ordens ao Rui: “Vai buscar pão fresco! A Maria não percebe nada disto.”
A tensão foi crescendo como uma nuvem negra sobre o nosso lar. O Rui tentava apaziguar: “Deixa lá, é só o feitio dela.” Mas eu sentia-me cada vez mais pequena na minha própria casa. Os miúdos começaram a evitar a avó, fechando-se no quarto ou pedindo para ir brincar para casa dos vizinhos.
Naquela noite fatídica, tudo explodiu. Eu estava a preparar o jantar quando ouvi vozes exaltadas na sala. A Matilde chorava. Corri e vi Dona Lurdes de pé, a apontar-lhe o dedo:
— Menina malcriada! Aqui não se fala assim aos mais velhos!
A Matilde soluçava:
— Eu só disse que não queria sopa…
Senti o sangue ferver. Cheguei-me à frente da minha filha:
— Aqui em casa ninguém grita com os meus filhos! Dona Lurdes, peço-lhe respeito.
Ela olhou-me de cima abaixo, olhos frios:
— Respeito? Tu é que devias aprender a ser mãe! Olha para esta casa, olha para estes miúdos… Se fosses mais como eu, nada disto acontecia!
O Rui entrou nesse momento, apanhando o fim da discussão. Ficou paralisado, sem saber para que lado se virar.
— Mãe… por favor…
Mas Dona Lurdes não se calava:
— Tu deixas esta mulher mandar em tudo! Nem sabes o que é uma família de verdade!
Foi aí que perdi o controlo. Senti as lágrimas nos olhos, mas falei com firmeza:
— Chega! Esta é a minha casa, são os meus filhos e o meu marido. Não admito mais faltas de respeito nem intromissões. Peço-lhe que saia.
O silêncio caiu pesado. O Rui olhou-me como se eu tivesse acabado de cometer um crime. Dona Lurdes levantou-se devagar, pegou na mala e saiu sem olhar para trás.
Naquela noite ninguém dormiu. O Rui ficou horas sentado à mesa da cozinha, sem dizer palavra. Os miúdos choraram até adormecerem. Eu fiquei acordada até ao nascer do sol, a perguntar-me se tinha feito bem.
Os dias seguintes foram um inferno gelado. O Rui mal falava comigo. Ia trabalhar cedo e chegava tarde. Quando estava em casa, limitava-se a responder por monossílabos. A Matilde e o Tiago perguntavam pela avó, mas eu não sabia o que dizer.
Uma semana depois, Dona Lurdes ligou ao Rui. Ouvi-o ao telefone:
— Sim, mãe… Sim… Ela está aqui… Não sei… — Olhou para mim com mágoa nos olhos.
Quando desligou, explodiu:
— Não tinhas o direito! É minha mãe! Podias ter esperado eu chegar! Agora está sozinha em casa…
Senti-me esmagada pela culpa e pela raiva.
— E eu? E os teus filhos? Também não merecemos respeito? Ela passou todos os limites!
Discutimos até à exaustão. Palavras duras foram ditas. O Rui saiu de casa nessa noite e só voltou no dia seguinte.
Os dias passaram devagar. A família dividiu-se: uns do lado da Dona Lurdes — “Coitada da senhora!” — outros do meu lado — “Fizeste bem!” As festas de família tornaram-se um campo minado. Os miúdos sentiam-se perdidos.
Um dia, a Matilde perguntou-me:
— Mãe, a avó vai voltar?
Abracei-a com força.
— Não sei, filha… Às vezes as pessoas precisam de tempo para perceberem as coisas.
O Rui e eu fomos à terapia de casal. Falámos sobre limites, respeito e o peso das famílias portuguesas nas nossas vidas. Ele percebeu que eu não podia ser sempre a mulher submissa que aceitava tudo em nome da paz familiar. Eu percebi que ele também precisava de tempo para digerir tudo.
Passaram-se meses até Dona Lurdes voltar a pôr os pés cá em casa. Veio num domingo à tarde, com um bolo de laranja nas mãos e um pedido tímido nos olhos.
— Maria… posso entrar?
Olhei para ela e vi uma mulher cansada, mas menos arrogante.
— Pode, Dona Lurdes. Mas aqui em casa há regras para todos.
Ela assentiu em silêncio.
Hoje ainda me pergunto: teria sido possível evitar tanto sofrimento? Teria eu outra escolha senão defender os meus filhos e o meu espaço? Será que fui demasiado dura ou apenas humana?
E vocês? O que teriam feito no meu lugar? Até onde vai o nosso dever de proteger a família sem perdermos nós próprios pelo caminho?