“Tive de pedir à minha sogra para devolver as chaves”: Quando deixei de me sentir em casa no meu próprio lar
— Outra vez, Dona Teresa? — murmurei, sentindo o cheiro intenso do detergente de limão assim que abri a porta de casa. O relógio marcava 18h47. O meu dia tinha sido longo, cheio de reuniões e trânsito, e tudo o que eu queria era largar a mala e descalçar os sapatos. Mas ali estava ela, de avental, a esfregar vigorosamente o balcão da cozinha.
— Olá, Mariana! Vim só dar uma arrumadela. O Miguel disse que andavam cansados — respondeu, sem sequer olhar para mim.
Senti o estômago apertar. Não era a primeira vez. Desde que casámos, há seis meses, que a minha sogra tinha uma cópia das chaves. No início pareceu-me sensato: “É só para alguma emergência”, disse o Miguel. “Se precisarmos que alguém regue as plantas ou receba uma encomenda.” Eu quis mostrar que era madura, aberta, que não tinha nada a esconder. Mas agora, cada vez que entrava em casa e encontrava Dona Teresa — ou sinais dela: roupa dobrada de forma diferente, panelas arrumadas noutro armário — sentia-me uma estranha no meu próprio lar.
— Não era preciso, Dona Teresa. Eu trato disso — tentei sorrir, mas a voz saiu-me tensa.
Ela pousou o pano e olhou-me finalmente nos olhos.
— Mariana, eu só quero ajudar. Vocês trabalham tanto… E sabes como é, homem sozinho não repara em nada. Se não fosse eu, isto já estava um caos.
Engoli em seco. O Miguel chegava tarde e raramente via a mãe em ação. Para ele, era só uma ajuda discreta. Para mim, era uma invasão constante.
Naquela noite, esperei que ele chegasse para falar.
— Miguel, precisamos conversar — disse-lhe assim que entrou.
Ele pousou as chaves e olhou-me com preocupação.
— O que se passa?
— A tua mãe… Ela está cá quase todos os dias. Eu não consigo relaxar em casa. Sinto-me… vigiada.
Ele suspirou.
— Mariana, ela só quer ajudar. Sabes como é a minha mãe…
— Eu sei! Mas isto não é normal. Ela mexe nas minhas coisas, troca tudo de sítio… Hoje encontrei as minhas cartas abertas!
Miguel ficou calado. O silêncio entre nós tornou-se pesado.
— Queres que lhe peça para devolver as chaves? — perguntou finalmente.
— Quero — respondi sem hesitar, surpreendendo-me com a firmeza da minha voz.
Na manhã seguinte, Dona Teresa apareceu com um bolo de laranja e um sorriso forçado.
— Mariana, posso falar contigo?
Fomos até à varanda. Ela olhou para mim com olhos marejados.
— O Miguel disse-me que já não queres que eu tenha as chaves… Fiz alguma coisa de mal?
Senti-me pequena, egoísta. Mas precisava ser honesta.
— Dona Teresa, eu agradeço tudo o que faz por nós. Mas preciso de sentir que esta casa é minha também. Preciso do meu espaço.
Ela ficou em silêncio durante uns segundos eternos.
— Eu só queria ajudar… Quando perdi o meu marido, senti-me tão sozinha. O Miguel é tudo o que me resta. E agora sinto que também estou a perder isso.
As palavras dela cravaram-se em mim como agulhas. Pensei na solidão dela, na minha própria necessidade de privacidade. Era possível conciliar as duas coisas?
Os dias seguintes foram estranhos. Dona Teresa deixou de aparecer sem avisar. O Miguel tornou-se mais distante; percebia-se que estava dividido entre mim e a mãe. Começámos a discutir por pequenas coisas: quem ia buscar pão, quem esquecia as luzes acesas… Tudo parecia mais tenso.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre a loiça por lavar, sentei-me no sofá e chorei baixinho. Senti-me culpada por afastar Dona Teresa, culpada por exigir espaço ao Miguel, culpada por não conseguir ser aquela nora perfeita dos filmes portugueses da tarde.
No domingo seguinte, fomos almoçar à casa dela. A mesa estava posta com todo o cuidado: bacalhau à Brás, arroz doce polvilhado com canela em forma de coração. Mas o ambiente era frio.
No final da refeição, Dona Teresa levantou-se e foi buscar uma caixa pequena.
— Mariana — disse ela, estendendo-ma — aqui estão as chaves. Sei que foi difícil para ti pedir isto. Também foi difícil para mim aceitar. Mas quero que sejas feliz aqui com o Miguel. Só te peço uma coisa: não me excluas da vossa vida.
Abracei-a com força inesperada. Senti as lágrimas dela molharem-me o ombro.
Voltámos para casa em silêncio. No carro, Miguel pegou na minha mão.
— Obrigado por seres honesta comigo — murmurou ele.
A nossa vida mudou depois disso. Dona Teresa passou a ligar antes de vir e eu aprendi a convidá-la mais vezes para jantar connosco. O Miguel percebeu que precisava estar mais atento às minhas necessidades e às da mãe.
Ainda hoje há dias em que sinto saudades da liberdade total ou em que me irrito com algum comentário dela sobre como dobro os lençóis ou tempero o arroz. Mas aprendi que família é isto: um equilíbrio frágil entre dar espaço e dar colo.
Às vezes pergunto-me: teria sido diferente se eu tivesse falado mais cedo? Quantas mulheres se sentem assim — estrangeiras no próprio lar? E vocês, já passaram por algo parecido? Como encontraram o vosso lugar?