Testamento na Sombra: Verdades de Família e Herança
— Mãe, tens mesmo de comer isto agora? — perguntou a Mariana, olhando-me com aquele ar de quem já não tem paciência para as minhas manias. O arroz estava frio, e o peixe, seco. Mas o que me doía não era a comida, era o tom dela, tão distante, tão diferente da menina que eu embalei nos braços há trinta anos.
Senti um aperto no peito, mas não disse nada. O calor era insuportável, o suor escorria-me pela testa, e a sala parecia encolher à minha volta. O relógio marcava três da tarde, e a luz do sol entrava pelas janelas, desenhando sombras compridas no chão. O João, o meu filho mais novo, mexia no telemóvel, alheio a tudo. Só levantou os olhos quando ouviu o prato cair das minhas mãos.
— Mãe?! — gritou ele, mas a voz dele parecia vir de longe. Tudo ficou escuro.
Acordei no hospital, com a Mariana a segurar-me a mão. O João estava encostado à parede, a falar baixo ao telefone. Senti-me fraca, mas mais do que isso, senti-me vazia. A médica disse que tinha sido um colapso, talvez do calor, talvez do cansaço, talvez de tudo junto. Mas eu sabia que era mais do que isso. Era solidão, era tristeza, era a sensação de ser um peso para os meus próprios filhos.
Quando voltei para casa, tudo parecia igual, mas nada estava igual. A Mariana começou a vir mais vezes, mas vinha sempre apressada, sempre com o olhar no relógio. O João passou a dormir cá em casa, mas passava as noites a jogar no computador, e as manhãs a dormir. Eu ouvia-os a falar na cozinha, a pensarem que eu não ouvia.
— Achas que a mãe vai aguentar muito tempo assim? — sussurrou a Mariana.
— Não sei, mas temos de ver como fica a casa. Ela nunca disse nada sobre o testamento — respondeu o João, num tom que me gelou o sangue.
Fiquei ali, deitada na cama, a ouvir os meus filhos a discutir o meu futuro como se eu já não estivesse cá. Senti uma raiva surda, misturada com uma tristeza antiga. Lembrei-me do António, o meu marido, que morreu há dez anos. Ele dizia sempre: “Os filhos são a nossa alegria, mas também podem ser a nossa maior dor”. Na altura, achei que era exagero. Agora, percebia cada palavra.
Naquela noite, não consegui dormir. Oiço o tique-taque do relógio, o ranger do soalho, os passos deles pela casa. Senti-me uma estranha na minha própria vida. No dia seguinte, levantei-me cedo, vesti o meu melhor vestido — aquele azul que o António adorava — e fui à rua. Apanhei o autocarro para o centro da vila, sentindo os olhares curiosos dos vizinhos. Fui direta ao escritório do Dr. Álvaro, o advogado da família.
— Dona Teresa, que surpresa! — disse ele, levantando-se para me cumprimentar. — Em que posso ajudar?
Sentei-me à frente dele, com as mãos a tremer.
— Quero mudar o meu testamento, Dr. Álvaro. Quero garantir que tudo o que construí com o António não se perca nas mãos erradas.
Ele olhou-me com surpresa, mas não fez perguntas. Começámos a falar de números, de propriedades, de contas bancárias. Mas eu só pensava nos olhos dos meus filhos, na frieza das suas vozes. Lembrei-me de quando eram pequenos, das noites em claro, das febres, dos beijos de boa noite. Onde é que tudo isso se perdeu?
Quando saí do escritório, o sol já ia baixo. Sentei-me num banco do jardim, a ver as crianças a brincar. Senti uma lágrima escorrer-me pela face. Não era isto que eu tinha sonhado para a minha família. Não era isto que eu queria deixar como herança.
Naquela semana, tentei falar com a Mariana e com o João. Quis explicar-lhes o que sentia, mas eles estavam sempre ocupados, sempre distraídos. A Mariana falava-me de contas, de despesas, de seguros. O João perguntava-me se eu já tinha pensado em vender a casa e ir para um lar.
— Um lar? — perguntei, incrédula. — Achas mesmo que eu quero acabar os meus dias rodeada de estranhos?
Ele encolheu os ombros.
— Não é isso, mãe. É só que… seria mais fácil para todos.
Mais fácil para quem? Para mim, ou para eles?
Nessa noite, sentei-me à mesa da cozinha, sozinha. Olhei para as fotografias na parede: o António com os miúdos ao colo, a Mariana no seu primeiro dia de escola, o João a soprar as velas do bolo de anos. Senti uma saudade tão grande que me doeu no peito.
No domingo seguinte, chamei-os para jantar. Fiz o prato preferido de cada um: bacalhau à Brás para a Mariana, arroz de pato para o João. Quando se sentaram à mesa, olhei-os nos olhos.
— Quero falar convosco sobre o futuro — disse, tentando manter a voz firme. — Sobre o que vai acontecer quando eu já cá não estiver.
A Mariana olhou para o João, desconfortável. O João baixou os olhos para o prato.
— Mãe, não precisamos de falar disso agora — disse ela.
— Precisamos, sim. Porque eu não quero que fiquem a pensar que tudo o que fiz foi em vão. Quero que saibam que a herança mais importante que vos posso deixar não é esta casa, nem o dinheiro. É o amor, é a memória da nossa família.
Eles ficaram em silêncio. Senti que as minhas palavras batiam numa parede invisível.
— Eu ouvi-vos a falar na cozinha — continuei, com a voz a tremer. — Ouvi-vos a discutir o que iam fazer com a casa, com as minhas coisas. Senti-me… descartável.
A Mariana começou a chorar. O João levantou-se e saiu da sala. Fiquei ali, sozinha, a olhar para os pratos cheios.
Naquela noite, a Mariana veio ter comigo ao quarto.
— Desculpa, mãe. Eu só… tenho medo de te perder. E às vezes, o medo faz-nos dizer coisas que não sentimos.
Abracei-a, mas o abraço dela era frio, distante. O João não voltou a falar comigo durante dias.
O tempo passou, e fui-me habituando à solidão. Os meus filhos continuaram a vir, mas cada vez menos. Os vizinhos começaram a perguntar se estava tudo bem, se precisava de alguma coisa. Eu sorria e dizia que sim, que estava tudo bem. Mas por dentro, sentia-me a desaparecer.
Agora, sentada nesta sala vazia, com o testamento novo guardado na gaveta, pergunto-me: o que é que realmente fica de nós quando partimos? Será que o amor de uma mãe pode sobreviver à frieza dos tempos modernos? Ou será que, no fim, somos todos apenas sombras à espera de desaparecer?
E vocês, o que fariam no meu lugar? O que é mais importante: proteger o património ou tentar salvar os laços de família, mesmo quando parecem já não existir?