Telefon Silencioso na Madrugada – A História de Inês

— Inês, estás acordada? — a voz do António ecoou rouca e hesitante do outro lado da linha, enquanto eu ainda tentava perceber se estava a sonhar ou se aquele toque insistente era mesmo real.

Olhei para o relógio: 3h17 da manhã. O coração disparou-me no peito, não só pelo susto, mas porque aquela voz, que durante anos foi o meu porto seguro, agora era apenas uma sombra do que já fomos. Sentei-me na cama, sentindo o frio da noite a envolver-me, e respondi num sussurro:

— António? O que se passa? Sabes que horas são?

Houve um silêncio pesado. Do outro lado, ouvi apenas a respiração dele, entrecortada, como se estivesse a lutar contra as palavras.

— Preciso de falar contigo. Não consegui dormir… — disse ele, finalmente.

Fechei os olhos por um momento. O passado veio-me à memória como um vendaval: as discussões intermináveis, os olhares vazios à mesa de jantar, a solidão partilhada debaixo do mesmo teto. Tinha lutado tanto para me libertar daquele ciclo, para reconstruir a minha vida em Lisboa com a nossa filha Leonor, agora adolescente e cheia de perguntas que eu nem sempre sabia responder.

— António, não podes ligar-me assim. Já não faz sentido — tentei manter a voz firme, mas senti-a tremer.

— Eu sei… desculpa. Só… só precisava de ouvir a tua voz. Sinto-me tão sozinho — confessou ele, e senti uma pontada de pena misturada com raiva. Quantas vezes eu própria não me sentira assim? Quantas vezes não gritei por ajuda e ele não ouviu?

A conversa terminou pouco depois, sem grandes conclusões. Fiquei sentada na cama muito tempo depois de desligar, a olhar para o teto escuro do quarto. O silêncio pesava mais do que qualquer palavra dita naquela chamada.

Na manhã seguinte, Leonor entrou no quarto com o cabelo despenteado e os olhos semicerrados.

— Mãe, estavas a falar ao telefone ontem à noite? Ouvi-te…

Sorri-lhe, tentando esconder o cansaço.

— Era só uma chamada de trabalho, querida. Vai tomar o pequeno-almoço.

Ela olhou-me de lado, desconfiada. Sempre foi perspicaz demais para a idade. Senti-me culpada por mentir-lhe, mas como explicar-lhe que o pai dela ainda era uma ferida aberta na minha vida?

No trabalho, mal consegui concentrar-me. Os colegas notaram o meu ar ausente. A Ana, minha amiga e confidente desde os tempos da faculdade, puxou-me para um canto na pausa do café.

— Inês, estás bem? Pareces um fantasma…

— O António ligou-me ontem à noite — confessei, baixando os olhos.

Ela suspirou.

— Outra vez? Achava que já tinhas conseguido afastar-te disso…

— Eu também achava — respondi, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — Mas parece que o passado nunca nos larga.

Ana apertou-me a mão.

— Tens de ser firme. Por ti e pela Leonor.

Assenti, mas as palavras dela soaram vazias. Como ser firme quando o coração ainda vacila ao ouvir aquela voz? Como fechar uma porta que nunca se trancou verdadeiramente?

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. António começou a mandar mensagens: “Desculpa”, “Sinto tua falta”, “Podemos conversar?”. Ignorei as primeiras, mas depois cedi. Marcámos um café num sítio público, para não dar azo a mal-entendidos.

Quando o vi entrar no café da esquina, senti um nó no estômago. Estava mais magro, o cabelo grisalho mais evidente. Sentou-se à minha frente sem dizer palavra durante alguns segundos.

— Inês… — começou ele — Não quero voltar atrás no tempo. Só queria perceber onde falhámos tanto.

Olhei-o nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— Falhámos porque deixámos de ouvir um ao outro. Porque deixaste de me ver — respondi com mais dureza do que queria.

Ele baixou a cabeça.

— Eu sei. E arrependo-me todos os dias.

O silêncio instalou-se entre nós como uma terceira pessoa à mesa. Lembrei-me das noites em que ficava acordada à espera dele chegar do trabalho; das vezes em que tentei falar sobre os meus medos e ele respondia com indiferença ou mudava de assunto para futebol ou política.

— António, não podemos voltar atrás. Temos de seguir em frente — disse-lhe finalmente.

Ele assentiu devagar.

— E a Leonor? Sinto que estou a perdê-la também…

Respirei fundo. A relação dele com a filha tinha-se tornado distante desde o divórcio. Leonor evitava falar dele e recusava-se a passar fins-de-semana na casa nova do pai.

— Tens de te esforçar mais por ela — disse-lhe. — Não basta apareceres quando te sentes sozinho.

Ele olhou-me com tristeza nos olhos.

— Não sei como fazer isso…

— Começa por ouvi-la — sugeri. — Ela precisa de sentir que pode confiar em ti outra vez.

Voltámos para casa em silêncio. Durante dias pensei naquela conversa. Queria proteger a Leonor da dor que eu própria sentira, mas sabia que não podia controlar tudo.

Uma noite, ouvi-a chorar no quarto. Entrei devagar e sentei-me na beira da cama dela.

— O que se passa, filha?

Ela limpou as lágrimas com as costas da mão.

— O pai mandou-me uma mensagem… Diz que sente saudades minhas… Mas eu não sei se quero vê-lo…

Abracei-a com força.

— Não tens de fazer nada que não queiras. Mas lembra-te: ele é teu pai e também está a aprender a lidar com isto tudo.

Ela olhou-me nos olhos.

— E tu? Ainda gostas dele?

Fiquei sem resposta durante alguns segundos. Como explicar-lhe que o amor pode transformar-se em mágoa e saudade ao mesmo tempo?

— Gosto dele como pessoa, porque foi importante na minha vida e é teu pai. Mas já não é aquele amor de antes — respondi finalmente.

Leonor assentiu devagar e encostou-se ao meu ombro.

Os meses passaram e as coisas foram acalmando. António começou a aparecer mais vezes para ver Leonor; às vezes iam ao cinema ou passeavam pelo Jardim da Estrela. Eu mantinha distância, mas sentia um certo alívio ao vê-los juntos outra vez.

No entanto, havia sempre aquela sombra do passado entre nós três. Um dia, durante um jantar em família na casa dos meus pais em Sintra — algo raro desde o divórcio —, o meu irmão Miguel não resistiu a provocar:

— Então António, já arranjaste alguém para te aturar?

O ambiente ficou tenso. A minha mãe lançou-lhe um olhar reprovador e eu senti vontade de desaparecer dali.

António sorriu amarelo.

— Não é fácil encontrar alguém depois de se perder tudo…

Miguel riu-se alto demais.

— Perder tudo? Ou será que nunca tiveste nada?

Levantei-me da mesa abruptamente e fui para o jardim respirar fundo. A minha mãe veio ter comigo pouco depois.

— Filha, desculpa o teu irmão… Ele só quer proteger-te.

— Eu sei… Mas às vezes sinto que nunca vou conseguir deixar isto tudo para trás — confessei-lhe.

Ela abraçou-me em silêncio.

Naquela noite voltei para Lisboa com Leonor adormecida no banco de trás do carro. Olhei-a pelo espelho retrovisor e senti uma onda de ternura misturada com medo: medo de falhar como mãe; medo de nunca conseguir reconstruir-me totalmente; medo de que o passado continue sempre à espreita nas esquinas da minha vida.

Agora escrevo estas palavras sentada na varanda do meu pequeno apartamento, ouvindo os sons da cidade lá fora e sentindo finalmente alguma paz dentro de mim. Mas pergunto-me: será mesmo possível fechar capítulos antigos quando há sempre alguém disposto a reabrir as páginas? Ou será que algumas histórias nunca têm um fim definitivo?