Tarde Demais Para Voltar: Entre o Silêncio e o Perdão
— Não me ligues mais, Leonor. Já chega! — A voz da minha irmã, Mariana, ecoou fria do outro lado da linha antes de desligar abruptamente. Fiquei ali, com o telemóvel colado ao ouvido, a ouvir o silêncio que se seguiu. O meu coração batia descompassado, como se quisesse saltar do peito e fugir daquele momento.
Nunca pensei que chegaríamos a este ponto. Sempre fomos só nós duas, desde que os nossos pais morreram naquele acidente na A1, há vinte anos. Eu tinha vinte e três anos, ela dezassete. Lembro-me de prometer-lhe, no funeral, que nunca a deixaria sozinha. Mas a vida, com as suas voltas e reviravoltas, foi afastando-nos.
Aos poucos, fui-me enterrando no trabalho. O escritório de advogados em Lisboa exigia tudo de mim: noites sem dormir, fins de semana passados entre processos e reuniões. Mariana, por outro lado, ficou em Coimbra, a estudar Belas-Artes. Sempre achei que ela vivia num mundo à parte, rodeada de tintas e sonhos impossíveis. Talvez tenha sido inveja, ou talvez medo de não conseguir protegê-la naquele universo tão diferente do meu.
As discussões começaram pequenas: uma palavra atravessada ao telefone, um aniversário esquecido. Depois vieram as acusações: “Nunca tens tempo para mim”, “Só te importas com o teu trabalho”, “Nem sabes o nome do meu namorado”. Eu respondia com ironia ou silêncio — era mais fácil assim do que admitir que ela tinha razão.
O tempo foi passando e as chamadas tornaram-se raras. Quando nos víamos no Natal, a tensão era palpável. O último Natal juntas foi há cinco anos. Mariana chegou atrasada, com um cachecol vermelho e um sorriso forçado. Sentámo-nos à mesa, as duas sozinhas no apartamento dos nossos pais, agora meu. O peru arrefecia enquanto trocávamos frases curtas e olhares evitados.
— Porque é que nunca vens a Coimbra? — perguntou ela de repente.
— Porque estou sempre ocupada — respondi, sem levantar os olhos do prato.
— Sempre ocupada… — repetiu ela, como se saboreasse as palavras amargas.
Depois disso, levantou-se e saiu. Não voltou a atender as minhas chamadas.
Durante anos tentei convencer-me de que estava tudo bem. Tinha uma carreira sólida, um apartamento bonito na Lapa, viagens de negócios para Madrid e Paris. Mas à noite, quando chegava a casa e pousava a mala no corredor vazio, sentia o peso do silêncio. O sucesso não preenche o vazio deixado por quem amamos.
Foi só quando recebi uma mensagem da nossa prima Sofia — “A Mariana está doente” — que percebi que talvez fosse tarde demais para voltar atrás. O medo apertou-me o peito como um punho fechado. Liguei-lhe imediatamente, mas ela não atendeu. Liguei outra vez. E outra. Até ouvir aquela frase cortante: “Não me ligues mais.”
Passei a noite em claro, sentada no sofá com uma manta sobre os ombros e uma chávena de chá frio nas mãos. A chuva batia nas janelas como se quisesse entrar e lavar tudo aquilo que ficou por dizer.
No dia seguinte apanhei o comboio para Coimbra. O caminho pareceu interminável; cada estação era uma recordação: as férias na Figueira da Foz, os passeios de bicicleta na infância, as tardes de estudo antes dos exames nacionais. Senti-me pequena outra vez, órfã não só dos meus pais mas também da única pessoa que restava da minha família.
Cheguei ao hospital com as mãos a tremer. A rececionista olhou-me com pena quando perguntei pela Mariana.
— É família? — perguntou.
— Sou irmã — respondi, quase num sussurro.
Ela indicou-me o caminho para o quarto 312. O corredor cheirava a desinfetante e medo. Quando entrei no quarto, vi-a deitada na cama, pálida e magra demais para os seus trinta e sete anos. Os olhos dela encontraram os meus e por um momento pensei que ia sorrir. Mas desviou o olhar para a janela.
— O que fazes aqui? — perguntou, sem emoção.
— Vim ver-te… — respondi, sentindo-me ridícula.
— Agora? Depois de tanto tempo?
Sentei-me na cadeira ao lado da cama. O silêncio entre nós era tão denso que quase podia tocá-lo.
— Desculpa — disse finalmente. — Devia ter estado mais presente.
Ela riu-se, um riso seco e sem alegria.
— Agora já não interessa muito, pois não?
Fiquei ali horas, a olhar para ela enquanto dormia. Queria tocar-lhe na mão, pedir-lhe perdão por todos os aniversários esquecidos, por todas as vezes que escolhi o trabalho em vez dela. Mas as palavras ficaram presas na garganta.
Nos dias seguintes tentei compensar o tempo perdido: trouxe-lhe livros, comprei-lhe flores, sentei-me ao lado dela a ver séries antigas na televisão do hospital. Às vezes ela falava comigo como se nada tivesse acontecido; outras vezes ignorava-me completamente.
Uma tarde perguntei-lhe:
— Mariana… achas que ainda podemos ser irmãs?
Ela olhou para mim com uma tristeza infinita nos olhos.
— Não sei se consigo perdoar-te por me teres deixado sozinha quando mais precisei de ti.
Chorei nesse dia como não chorava desde a morte dos nossos pais. Senti-me vazia e inútil — tudo aquilo que tentei evitar ao longo da vida com trabalho e sucesso.
O diagnóstico era leucemia avançada. Os médicos foram claros: havia pouco a fazer além de tentar aliviar-lhe as dores. Passei a dormir numa cadeira ao lado dela todas as noites. Lia-lhe cartas antigas dos nossos pais; falávamos das férias em Vila Nova de Milfontes; ríamos das nossas traquinices de infância.
Na última noite antes de ela partir, segurou-me na mão com força surpreendente para alguém tão fraca.
— Leonor… promete-me uma coisa: não te esqueças de ti mesma como te esqueceste de mim.
Prometi-lhe entre lágrimas. No dia seguinte acordei com a mão dela ainda na minha — fria e imóvel.
O funeral foi pequeno: eu, Sofia e dois amigos dela da faculdade. Olhei para o caixão e percebi que estava verdadeiramente sozinha no mundo.
Voltei para Lisboa com uma mala cheia de cartas antigas e quadros pintados por Mariana — retratos nossos em criança, paisagens inventadas onde sempre brilhava um sol impossível.
Hoje olho para essas pinturas penduradas nas paredes do meu apartamento vazio e pergunto-me: quantas vezes deixamos para amanhã aquilo que devia ser dito hoje? Quantos silêncios cabem entre duas irmãs antes de ser tarde demais?
E vocês? Já disseram tudo aquilo que tinham para dizer às pessoas que amam?