Sozinha: O Silêncio dos Meus Filhos

— Não posso, mãe. Tenho a minha vida, os miúdos, o trabalho… — disse Sofia, desviando o olhar para o telemóvel, como se a minha presença fosse um incómodo.

O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. Henrique, sentado à mesa da cozinha, mexia no café frio, evitando também cruzar o olhar comigo. Senti o coração apertar-se no peito. Tantos anos a cuidar deles sozinha, tantas noites sem dormir, tantos empregos trocados para garantir que nunca lhes faltasse nada. Agora, com setenta e dois anos e a saúde a fraquejar, precisava deles mais do que nunca.

— Então é isso? — perguntei, tentando manter a voz firme. — Nenhum dos dois pode ficar comigo?

Henrique suspirou, finalmente levantando os olhos. — Mãe, eu moro em Braga. O meu apartamento é pequeno, a Ana não ia gostar… E tu sabes como ela é.

Sofia bufou. — Claro, a culpa é sempre das mulheres dos outros. Eu é que tenho de ficar com tudo! Já não bastou ser eu a cuidar do pai quando ele adoeceu?

Henrique levantou-se abruptamente. — Não venhas com isso agora! Cada um fez o que pôde!

O tom deles subia e descia como as marés em Matosinhos, onde cresci e onde criei os meus filhos depois que o António nos deixou. Recordo-me de noites em claro, de febres altas, de correrias para o hospital com Sofia nos braços e Henrique pela mão. Recordo-me de sorrisos ao pequeno-almoço, de festas de aniversário improvisadas com bolo de iogurte e velas tortas. Tudo isso parecia tão distante agora.

— Eu não estou a pedir muito — disse baixinho. — Só preciso de companhia… alguém que me ajude com as compras, os remédios…

Sofia levantou-se também, pegando na mala. — Vou trabalhar. Depois falamos.

Henrique seguiu-a até à porta. Fiquei sozinha na cozinha, ouvindo o som das chaves e o portão a fechar-se. O relógio da parede marcava dez horas da manhã. O dia mal começara e eu já sentia o peso da solidão.

Os dias seguintes foram iguais: telefonemas curtos, promessas vazias de visitas ao fim de semana que nunca se concretizavam. A vizinha Dona Amélia vinha trazer pão fresco e conversar um pouco, mas era diferente. Os meus filhos eram o meu mundo — ou pelo menos tinham sido.

Uma tarde chuvosa, ouvi bater à porta. Era Henrique, sozinho.

— Mãe… — começou ele, hesitante. — Estive a falar com a Sofia. Achamos melhor veres uma casa de repouso.

Senti um frio percorrer-me o corpo inteiro.

— Uma casa de repouso? Eu não sou um móvel velho para ser posto de lado!

Henrique baixou a cabeça. — Não é isso… É só para teu bem. Lá tens médicos, companhia…

— Companhia? Eu quero os meus filhos! Quero os meus netos! Quero ouvir risos nesta casa outra vez!

Ele não respondeu. Ficou ali parado, como um estranho na casa onde cresceu.

Naquela noite não dormi. Fui até à sala e sentei-me no sofá onde tantas vezes adormeci com eles ao colo. Olhei as fotografias nas prateleiras: Sofia no seu primeiro dia de escola; Henrique com o diploma na mão; os dois abraçados num Natal antigo. Senti uma lágrima escorrer pelo rosto.

No dia seguinte, Sofia ligou.

— Mãe, pensa bem… Não queres ir ver uma casa em Vila Nova de Gaia? Dizem que é boa.

— Não quero ir para lado nenhum! Quero ficar na minha casa!

— Mas assim não dá… Não podemos estar sempre aí.

— Nunca vos pedi nada! Só queria um pouco do vosso tempo!

Do outro lado da linha ouvi um suspiro impaciente antes do silêncio final.

Os dias tornaram-se semanas. As dores nas pernas aumentaram; as escadas pareciam cada vez mais altas. Dona Amélia continuava a ajudar-me como podia, mas sentia-me cada vez mais invisível para quem mais amava.

Uma tarde, ouvi vozes no corredor: Sofia e Henrique discutiam junto à porta.

— Não vou ser eu a ficar com ela! Já tenho problemas suficientes!

— E eu? Achas que a Ana aceita? Ela já disse que não quer cá ninguém!

— Então que vá para o lar! Que queres que faça?

— É tua mãe também!

— Pois é… mas parece que só eu é que tenho responsabilidades nesta família!

A porta abriu-se de repente e vi-os ali, exaustos e zangados.

— Chega! — gritei, surpreendendo até a mim mesma. — Se querem discutir sobre quem me atura menos, podem ir embora os dois! Eu fico sozinha!

Eles calaram-se por um instante, trocando olhares desconfortáveis.

— Mãe… — murmurou Sofia.

— Não! Vão embora! Façam como têm feito até agora!

Saíram sem dizer palavra. Sentei-me na cadeira da cozinha e chorei como não chorava há anos.

Naquela noite escrevi uma carta para cada um deles:
“Meus filhos,
Sei que têm as vossas vidas e problemas. Talvez eu tenha errado em esperar tanto de vocês ou em vos proteger demais do mundo lá fora. Só queria sentir que ainda faço parte da vossa família. Se algum dia quiserem voltar para casa, estarei aqui — se ainda cá estiver.
Com amor,
Mãe”

Não sei se leram as cartas ou se as guardaram numa gaveta qualquer junto das contas por pagar e dos papéis esquecidos.

Os meses passaram devagar. O Natal chegou sem ceia nem risos; apenas o som distante dos foguetes e das vozes dos vizinhos celebrando em família. Sentei-me à janela e vi as luzes acesas nas casas ao redor, imaginando como seria estar ali dentro, rodeada de filhos e netos.

Às vezes pergunto-me: será que fui demasiado dura? Será que lhes dei tudo menos aquilo que realmente precisavam? Ou será que é assim mesmo a vida — uma sucessão de desencontros e silêncios?

Hoje olho para as paredes desta casa vazia e penso: quantas mães portuguesas vivem este mesmo abandono? Quantos filhos se esquecem das raízes enquanto correm atrás do futuro?

E vocês? O que fariam no meu lugar? Será possível reconstruir uma família quando tudo parece perdido?