Sozinha no Bairro: A História de uma Mãe Portuguesa
— Achas mesmo que vais conseguir criar o Diogo sozinha, Mariana? — A voz da minha mãe ecoava pela cozinha, misturada com o cheiro do café acabado de fazer e o som distante da televisão na sala. Eu estava de costas para ela, a tentar não deixar cair as lágrimas na bancada enquanto cortava pão para o pequeno-almoço.
— Não é uma questão de conseguir ou não, mãe. É uma questão de não ter escolha — respondi, com a voz trémula, mas firme.
O silêncio que se seguiu foi mais pesado do que qualquer palavra. O Diogo, com apenas três anos, brincava no tapete da sala, alheio à tensão que pairava sobre nós. O meu pai entrou na cozinha nesse momento, olhou-me de lado e murmurou:
— Isto nunca teria acontecido se tivesses ouvido os nossos conselhos.
Aquelas palavras eram como facas. Desde que o Pedro me deixou — ou melhor, desde que decidiu que a responsabilidade era demasiado pesada para ele —, a minha vida tornou-se um campo de batalha. Não só contra as dificuldades do dia-a-dia, mas contra os olhares de soslaio dos vizinhos, os sussurros na mercearia e as conversas abafadas entre familiares.
Lembro-me bem do primeiro domingo em que fui à missa depois de tudo acontecer. Senti todos os olhos postos em mim. A Dona Lurdes, sempre tão simpática, desviou o olhar quando me aproximei para cumprimentá-la. O senhor Joaquim, que costumava brincar com o Diogo, limitou-se a um aceno distante. Senti-me invisível e, ao mesmo tempo, exposta como nunca.
As noites eram as piores. Depois de adormecer o Diogo, sentava-me na varanda a olhar para o céu escuro do Ribatejo e perguntava-me como é que a minha vida tinha chegado ali. Tinha apenas vinte e seis anos e já sentia o peso do mundo nos ombros. O Pedro tinha sido o meu primeiro amor, o meu primeiro tudo. Quando lhe contei que estava grávida, vi nos olhos dele o medo a crescer até se transformar em fuga. Uma semana depois, desapareceu sem deixar rasto.
A minha família nunca me perdoou verdadeiramente por ter “estragado” a minha vida. O meu irmão mais velho, o Rui, foi dos poucos que tentou apoiar-me — mas mesmo ele tinha dificuldade em enfrentar os meus pais.
— Mariana, eles só querem o melhor para ti… — dizia-me ele numa dessas noites em que me encontrava a chorar no quarto.
— O melhor para mim ou para eles? — respondi-lhe, cansada de ouvir sempre as mesmas justificações.
No trabalho também não era fácil. Trabalhava numa pastelaria no centro da vila. As colegas falavam baixo quando eu entrava na sala das funcionárias. Uma vez ouvi a Carla dizer:
— Coitada da Mariana… sozinha com um filho pequeno. Deve ser difícil arranjar quem queira ficar com ela agora.
A raiva misturava-se com tristeza. Não queria pena nem compaixão — queria respeito. Queria poder andar na rua sem sentir que todos sabiam da minha vida melhor do que eu própria.
O Diogo era a minha força. Quando ele sorria para mim com aqueles olhos grandes e confiantes, sentia que tudo valia a pena. Mas havia dias em que me sentia esmagada pela solidão. Não tinha tempo para amizades, muito menos para pensar em voltar a apaixonar-me. As contas acumulavam-se na gaveta da cozinha; o frigorífico nem sempre estava cheio; e as noites eram longas demais.
Um dia, ao buscar o Diogo à creche, fui chamada à parte pela educadora.
— Mariana, posso falar consigo um minuto?
O coração disparou. Tinha medo de ouvir críticas sobre o comportamento do meu filho — como se tudo nele fosse reflexo das minhas falhas.
— O Diogo tem estado mais calado ultimamente… Está tudo bem em casa?
Senti uma onda de vergonha e culpa. Expliquei-lhe que estava tudo bem, apenas tínhamos tido algumas dificuldades financeiras e eu andava mais cansada.
Nessa noite chorei até adormecer. Senti-me uma mãe falhada. Mas no dia seguinte levantei-me cedo, preparei o pequeno-almoço com um sorriso forçado e levei o Diogo à escola como se nada fosse.
Os meses passaram e aprendi a ignorar os olhares e os comentários. Comecei a juntar dinheiro para alugar uma casa pequena só para nós dois. Queria dar ao Diogo um lar onde pudesse crescer sem sentir o peso dos julgamentos dos outros.
Quando finalmente consegui mudar-me, senti uma liberdade estranha — misturada com medo. A primeira noite na nossa nova casa foi silenciosa demais. O Diogo dormia profundamente no quarto ao lado; eu sentei-me no chão da sala vazia e chorei de alívio e solidão ao mesmo tempo.
A relação com os meus pais tornou-se ainda mais distante. A minha mãe ligava de vez em quando:
— Precisas de alguma coisa?
— Não, mãe. Estamos bem.
Sentia falta deles, mas sabia que precisava daquele espaço para me reencontrar.
Com o tempo, comecei a conhecer outras mães solteiras na vila — mulheres como eu, com histórias diferentes mas dores semelhantes. Criámos um pequeno grupo de apoio informal; encontrávamo-nos ao sábado no parque infantil enquanto os nossos filhos brincavam juntos.
Foi ali que conheci a Ana Paula. Ela tinha dois filhos e uma força contagiante.
— Sabes, Mariana… — disse-me ela um dia — Eles podem falar o que quiserem. No fim do dia, quem sabe da nossa vida somos nós.
Aquelas palavras ficaram comigo durante muito tempo.
O Diogo crescia feliz e saudável. Era um menino curioso e carinhoso. Um dia chegou a casa com um desenho:
— É para ti, mãe! Somos nós dois no parque!
Guardei aquele desenho como um tesouro.
Os anos passaram depressa demais. O Diogo entrou para a escola primária e eu consegui um emprego melhor numa loja de roupa na cidade vizinha. A vida começou finalmente a sorrir-nos — mesmo que as cicatrizes do passado ainda doessem de vez em quando.
No Natal passado reuni coragem para convidar os meus pais para jantar em nossa casa. Foi estranho no início; havia silêncios desconfortáveis e olhares trocados por cima da mesa. Mas quando o Diogo se sentou ao colo do avô e lhe mostrou os trabalhos da escola, vi nos olhos do meu pai um brilho de orgulho contido.
Depois do jantar, a minha mãe ficou comigo na cozinha a arrumar a loiça.
— És mais forte do que eu pensava… — disse ela baixinho.
Olhei para ela com lágrimas nos olhos e abracei-a pela primeira vez em anos.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que passei: as noites solitárias, as humilhações silenciosas, as lutas diárias por respeito e dignidade. Sei que ainda há quem me julgue — mas aprendi que só devo explicações a mim própria e ao meu filho.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem presas ao medo do julgamento dos outros? E até quando vamos permitir que nos definam pelas nossas cicatrizes?