Sozinha em Lisboa: Um Pedido que Ficou sem Resposta
— Mãe, não é o melhor para ninguém. — A voz da minha filha, Inês, soava firme, quase fria, do outro lado da linha. — Tu sabes como é a nossa vida, os miúdos, o trabalho… Não temos espaço, nem tempo.
Fiquei em silêncio, sentindo o peso das palavras dela a esmagar-me o peito. Oiço ao fundo o riso das minhas netas, tão distante de mim como se vivessem noutro planeta. Oiço também o som abafado do televisor na sala, onde o meu marido costumava adormecer depois do jantar. Agora, só há silêncio e o eco dos meus próprios passos.
— Eu compreendo, filha — menti, porque não compreendia. Não compreendia como é que uma mãe, que deu tudo pelos filhos, podia ser deixada assim, à margem, como se fosse um móvel velho que já não cabe na casa nova.
Desliguei o telefone devagar. Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto enrugado. Olhei para as fotografias na estante: o António a sorrir no nosso casamento, os miúdos pequenos na praia da Caparica, todos juntos à mesa no Natal. Agora, só eu e as paredes frias deste T2 em Benfica.
O António partiu há dois anos. Um cancro rápido e cruel levou-o numa primavera em que as flores pareciam zombar da minha dor. Desde então, os dias arrastam-se entre consultas no centro de saúde, idas ao supermercado e tardes intermináveis a olhar pela janela para o pátio onde já ninguém brinca.
O meu filho mais velho, o João, vive em Cascais. Tem uma casa grande, com jardim e piscina. Quando lhe pedi para ficar com eles — só por uns tempos, até me sentir melhor — ele hesitou:
— Mãe… não sei se é boa ideia. A Marta tem muito trabalho, os miúdos têm horários complicados… E tu sabes que gostas do teu espaço.
Espaço? O que eu queria era companhia. Queria ouvir vozes à volta da mesa, sentir o cheiro do jantar a fazer-se enquanto alguém me perguntava como correu o dia. Queria sentir-me útil outra vez.
A verdade é que me tornei invisível. Os vizinhos mudaram-se quase todos; os poucos que restam são tão velhos como eu e raramente saem de casa. Às vezes cruzo-me com a Dona Amélia no elevador:
— Então, Maria? Vai às compras?
— Vou, sim… E a senhora?
— Também… — responde ela, com um sorriso triste.
No supermercado sou apenas mais uma velha a empurrar o carrinho devagar. Os empregados olham-me com impaciência quando demoro a contar as moedas. Sinto-me um estorvo.
À noite, sento-me na varanda com uma chávena de chá e olho para as luzes da cidade. Penso no António e pergunto-lhe em silêncio: “O que faço agora? Para onde vou?” Sinto falta até das nossas discussões parvas sobre futebol ou política. Sinto falta de alguém que me diga “boa noite”.
No Natal passado tentei reunir a família cá em casa. Liguei à Inês:
— Filha, este ano podíamos fazer cá em casa… Tenho saudades de ter a casa cheia.
— Oh mãe… É complicado. O Pedro quer passar com os pais dele e nós já combinámos ir lá jantar. Talvez no Ano Novo?
O João também não podia: iam viajar para Londres.
Passei o Natal sozinha. Fiz bacalhau para mim e sentei-me à mesa posta para seis pessoas. Comi devagar, olhando para as cadeiras vazias. Depois chorei até adormecer no sofá.
No centro de saúde dizem-me que devia sair mais de casa, fazer amigos novos. Mas como? Onde? As pessoas da minha idade estão todas fechadas nas suas rotinas ou nos lares onde os filhos as deixaram.
Um dia tentei ir ao centro de convívio do bairro. Entrei devagarinho, sentindo-me deslocada entre grupos de senhoras que já se conheciam há anos.
— Olá, sou a Maria… — disse eu, mas ninguém pareceu ouvir.
Sentei-me num canto e ouvi-as falar dos netos, das doenças, das novelas da noite anterior. Senti-me ainda mais sozinha ali do que em casa.
Às vezes penso em vender o apartamento e ir para um lar. Mas depois lembro-me do António: “Enquanto puderes andar pelo teu pé e pensar pela tua cabeça, fica em casa.” Mas será isto viver? Ou apenas sobreviver?
A Inês liga-me uma vez por semana. Fala depressa:
— Está tudo bem? Precisas de alguma coisa?
— Não filha, está tudo bem — respondo sempre.
Mas não está tudo bem. Tenho medo de adoecer e ninguém dar por isso durante dias. Tenho medo de morrer sozinha e só darem conta quando o cheiro se espalhar pelo prédio.
Outro dia caí na casa de banho. Fiquei no chão durante meia hora até conseguir levantar-me sozinha. Liguei à Inês depois:
— Filha… caí hoje em casa.
— Ai mãe! Tens de ter cuidado! Queres que te compre um daqueles botões de emergência?
— Não é isso que eu preciso… — mas ela já não me ouvia.
O João mandou instalar uma câmara na entrada para “minha segurança”. Agora sinto-me vigiada até quando vou pôr o lixo.
Às vezes pergunto-me onde errei como mãe. Dei-lhes tudo: amor, tempo, sacrifícios. Trabalhei noites inteiras como costureira para lhes pagar os estudos. Nunca lhes faltou nada — nem roupa lavada nem comida quente nem colo quando estavam doentes.
Agora sou um peso? Uma obrigação? Ou será que é assim com todas as mães quando envelhecem?
A vizinha do 3º esquerdo morreu há duas semanas. Só deram por isso porque o cão dela não parava de ladrar à porta. Veio a polícia, vieram os bombeiros… Levaram-na num saco preto. Ninguém chorou por ela.
Tenho medo desse fim anónimo e frio.
Outro dia tentei falar com a Inês sobre isto:
— Filha… às vezes sinto-me muito sozinha.
— Oh mãe… tens de te distrair! Vai passear ao jardim! Lê um livro! Faz um bolo!
Não percebeu nada.
À noite sonho com o António a chamar por mim do outro lado da cama vazia. Acordo com saudades dele e com um nó na garganta.
Sei que há outras pessoas como eu — mães e pais esquecidos nas suas casas vazias enquanto os filhos correm atrás das suas vidas ocupadas. Sei que não sou caso único. Mas dói na mesma.
Hoje sentei-me à janela a ver o pôr-do-sol sobre Lisboa e perguntei-me: será este o destino de quem amou demais? Será que algum dia vou voltar a sentir-me viva?
E vocês? Acham que há solução para esta solidão dos velhos? Ou estamos todos condenados a ser sombras nas casas onde já fomos felizes?