“Sou só um banco?” – A minha luta por mim mesma depois de uma vida de sacrifícios pela família

— Mãe, não podes recusar! Preciso mesmo desse dinheiro agora! — A voz da Inês ecoava pelo telemóvel, misturando urgência e impaciência. Eu estava sentada na pequena varanda do meu apartamento em Lisboa, as mãos a tremerem ligeiramente. O sol poente pintava o céu de laranja, mas dentro de mim só havia cinzento.

Tinha regressado a Portugal há dois anos, depois de vinte e três a trabalhar em França como empregada doméstica. Cada euro que ganhei foi para as minhas filhas: Inês e Mariana. Lembro-me de cada Natal passado sozinha num quarto alugado, a chorar baixinho para não acordar a dona da casa. Lembro-me das malas feitas e desfeitas, das saudades que me rasgavam o peito. Tudo para que elas tivessem o que eu nunca tive: oportunidades.

— Inês, filha, já te ajudei este mês… — tentei explicar, mas ela interrompeu-me.

— Pois, mas tu não percebes! Eu tenho contas para pagar, a renda subiu, o Pedro está desempregado… — A voz dela subia de tom. — Tu é que sempre disseste que fazias tudo por nós!

Suspirei. Sim, sempre disse isso. E fiz tudo. Mas agora sentia-me exausta. Desde que voltei, parecia que nunca era suficiente. Mariana também me pedia ajuda constantemente: para os netos, para a casa, para as férias. Nunca um “obrigada” verdadeiro, só mais pedidos.

Lembro-me do dia em que decidi emigrar. O meu marido, o António, tinha morrido num acidente de trabalho quando as meninas eram pequenas. Fiquei sozinha com duas bocas para alimentar e uma casa por pagar. Não havia trabalho em Santarém, só promessas vazias e salários miseráveis. Uma vizinha falou-me de uma senhora em Lyon que precisava de uma empregada interna. Fui sem saber falar francês, com medo e vergonha de deixar as filhas com a minha mãe.

Durante anos, vivi para elas à distância. Mandava dinheiro todos os meses, comprava roupas bonitas no Natal, pagava explicações e viagens de finalistas. Mas perdi os aniversários, os primeiros namorados, as birras da adolescência. Quando vinha de férias, sentia-me uma estranha na minha própria casa.

— Mãe, estás a ouvir-me? — A voz da Inês trouxe-me de volta ao presente.

— Estou, filha… — respondi, tentando não chorar. — Mas também preciso de pensar em mim agora. Tenho 62 anos…

— Lá estás tu com isso! Sempre foste forte! Agora não vais deixar de ajudar só porque estás cansada! — E desligou sem esperar resposta.

Fiquei ali sentada, a olhar para o telemóvel como se fosse um objeto estranho. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Será que sou só um banco? Uma máquina de transferências automáticas?

No dia seguinte, Mariana apareceu em minha casa sem avisar.

— Mãe, preciso que fiques com os miúdos esta semana. O Rui vai trabalhar fora e eu tenho turnos duplos no hospital.

— Mariana… eu tinha marcado uma consulta médica…

— Não podes desmarcar? É só uma consulta! Os teus netos precisam de ti!

Olhei para ela e vi nos olhos o mesmo brilho exigente da irmã. Senti-me pequena, invisível.

— Filha… eu também preciso de cuidar de mim. Já não sou nova…

Mariana bufou.

— Sempre foste tão forte… Agora parece que só te queixas! — E saiu porta fora sem esperar resposta.

Fechei a porta devagarinho e encostei-me à madeira fria. As lágrimas caíram sem pedir licença. Senti-me sozinha como nunca antes.

Nessa noite liguei à minha amiga Rosa, também ela emigrante regressada.

— Maria do Céu, tens de te impor! Elas já são adultas! — disse ela com aquela voz firme que sempre admirei.

— Mas são minhas filhas… — respondi baixinho.

— E tu és tua! Quando é que vais começar a viver para ti?

As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias.

Comecei a reparar nas pequenas coisas: como as minhas filhas só me procuravam quando precisavam; como nunca perguntavam se eu estava bem; como nunca me convidavam para sair ou para jantar sem ser para tomar conta dos netos ou resolver problemas.

Um domingo à tarde, decidi fazer algo diferente: fui ao cinema sozinha. Senti-me estranha ao princípio, mas depois soube bem rir e chorar sem ninguém a julgar-me. Comprei um livro novo e passei horas no jardim a lê-lo ao sol. Comecei a ir às aulas de hidroginástica no centro comunitário.

As filhas estranharam.

— Então agora tens tempo para tudo menos para nós? — perguntou Inês num tom magoado.

— Tenho tempo para mim — respondi calmamente.

Mariana ficou ofendida quando recusei ficar com os netos numa sexta-feira à noite.

— Achas mais importante ir dançar do que ajudar a tua filha?

— Acho importante cuidar da minha saúde e da minha alegria — respondi.

Houve discussões, portas batidas, silêncios frios. Doeu muito. Senti culpa, medo de perder as filhas. Mas também senti alívio por finalmente dizer o que sentia.

Com o tempo, as coisas começaram a mudar devagarinho. Inês ligou um dia só para perguntar se eu estava bem. Mariana trouxe-me flores depois de uma consulta difícil no hospital.

Não foi fácil chegar aqui. Ainda hoje luto contra a culpa e o medo de ser egoísta. Mas aprendi que mereço respeito e carinho — não apenas obrigações e cobranças.

Às vezes pergunto-me: será que fiz tudo errado? Será que os sacrifícios valem mesmo a pena se nos esquecemos de nós próprios pelo caminho? O que acham vocês: é possível recuperar o amor-próprio depois de tantos anos a viver só para os outros?