Sombras na Reforma: A História da Dona Amélia de Lisboa

— Mãe, não podes ficar sempre a ligar-me. Tenho a minha vida, sabes? — A voz da minha filha, Inês, ecoou fria do outro lado da linha. Senti o peito apertar, como se cada palavra dela fosse uma pedra a pesar-me no coração.

Desliguei devagar, tentando não deixar as lágrimas caírem. O relógio marcava 18h12 e o silêncio do meu pequeno apartamento em Benfica parecia ainda mais pesado. Oiço o barulho dos carros lá fora, mas cá dentro só há o tique-taque do relógio e o eco das palavras da Inês. Quando me reformei, há três anos, imaginei tardes cheias de risos dos meus netos, bolos no forno e histórias partilhadas à mesa. Mas a realidade foi outra: os dias são longos, as noites frias e a solidão tornou-se minha única companhia fiel.

Fui enfermeira durante quarenta anos no Hospital de Santa Maria. Vi nascer vidas, vi partir outras. Sempre achei que o meu trabalho era importante, que fazia diferença. Mas agora, sentada neste sofá gasto, pergunto-me se alguém se lembra de mim para além dos turnos e das urgências.

O telefone raramente toca. Quando toca, é para avisar de contas em atraso ou para ouvir a voz apressada da Inês ou do meu filho Rui: “Desculpa mãe, não posso ir hoje.”

No Natal passado, preparei tudo como antigamente: bacalhau, rabanadas, sonhos. A mesa posta para seis, mas só vieram dois — os meus netos mais novos, trazidos à pressa pela Inês antes de irem jantar à casa dos sogros. Fiquei ali, a olhar para as cadeiras vazias, a ouvir o eco das gargalhadas que já não existem.

— Avó, porque é que estás sempre triste? — perguntou-me o Tomás, com os olhos grandes e sinceros.

Sorri-lhe como pude. — Não estou triste, querido. Só tenho saudades do tempo em que a casa estava cheia.

A verdade é que sinto falta de ser necessária. Quando era enfermeira, todos precisavam de mim. Agora sou só mais uma idosa na fila do supermercado, a contar moedas para ver se chega para o pão e o leite. A reforma mal dá para as despesas. Às vezes tenho de escolher entre comprar medicamentos ou pagar a conta da luz.

No prédio onde moro, quase todos são idosos como eu. Encontramo-nos no elevador ou à porta do café da esquina. Falamos das dores nas costas, dos netos que raramente aparecem, das saudades do tempo em que éramos vistos e ouvidos.

Um dia destes encontrei a Dona Lurdes no banco do jardim.

— Amélia, já viste como agora somos invisíveis? — desabafou ela, olhando para as crianças que brincavam ao longe.

— Somos sombras — respondi-lhe. — Sombras de quem fomos.

Ela sorriu triste. — Pelo menos ainda temos uma à outra para conversar.

Mas nem sempre é fácil. O Rui perdeu o emprego há seis meses e anda amargo. Quando me liga é só para pedir dinheiro emprestado ou desabafar sobre a vida difícil. Sinto-me culpada por não poder ajudar mais, mas também sinto raiva por ser sempre eu a ter de dar apoio quando ninguém parece lembrar-se de mim nos dias bons.

— Mãe, desculpa estar sempre a pedir-te isto… — começou ele numa dessas chamadas.

— Rui, eu faço o que posso. Mas também preciso de ajuda às vezes — tentei explicar-lhe.

Do outro lado só silêncio. Depois um suspiro pesado.

— Eu sei… Desculpa.

Mas nunca pergunta como estou realmente. Ninguém pergunta.

Às vezes penso em voltar ao hospital como voluntária. Mas depois lembro-me das dores nas pernas e do cansaço que não passa. O corpo já não responde como antes. E há dias em que levantar-me da cama parece uma batalha perdida.

A televisão faz-me companhia. Vejo novelas e programas da manhã onde falam de famílias felizes e avós rodeadas de netos sorridentes. Pergunto-me se isso existe mesmo ou se é só para vender detergentes e sonhos impossíveis.

No outro dia tentei falar com a Inês sobre como me sentia.

— Filha, às vezes sinto-me muito sozinha…

Ela interrompeu-me logo:

— Mãe, toda a gente está cansada! Eu trabalho o dia todo, depois ainda tenho de tratar dos miúdos e da casa… Não tenho tempo para estas conversas agora.

Fiquei calada. Não quis ser peso. Mas aquela noite chorei baixinho na almofada.

O pior é esta sensação de ser invisível até para quem mais amamos. Deixei tudo pelos meus filhos: trabalhei turnos duplos, faltei a festas e aniversários deles para garantir que nunca lhes faltava nada. Agora sou um fantasma na vida deles.

No prédio há uma vizinha nova, a Joana, mãe solteira com uma filha pequena chamada Matilde. Às vezes cruzamo-nos no corredor e ela sorri com simpatia.

— Dona Amélia, se precisar de alguma coisa é só dizer! — diz ela sempre.

Um dia cruzei-me com a Matilde no elevador e ela perguntou:

— A senhora tem netos?

Sorri-lhe:

— Tenho sim… mas quase nunca os vejo.

Ela ficou pensativa e depois deu-me um desenho colorido:

— É para si! Assim não fica triste.

Guardei aquele papel como um tesouro. Foi o primeiro gesto de carinho em muito tempo.

Os dias passam devagar. Às vezes penso em desistir de esperar por telefonemas ou visitas que nunca chegam. Outras vezes lembro-me das histórias dos meus pacientes — muitos deles morreram sozinhos nos hospitais onde trabalhei. Prometi a mim mesma que tentaria não ser amarga nem perder a esperança.

No domingo passado fui à missa na igreja do bairro. Sentei-me na última fila e rezei baixinho por força e paciência. No final vi algumas caras conhecidas; trocámos palavras rápidas sobre o tempo e as dores nas pernas. Mas ninguém perguntou como estava realmente o meu coração.

À noite escrevi uma carta à Inês que nunca cheguei a enviar:

“Filha,
Sei que tens uma vida cheia e cansativa. Mas às vezes sinto falta de um abraço teu ou de ouvir a tua voz sem pressa. Sinto falta de ser vista por ti não só como mãe ou avó dos teus filhos, mas como pessoa que ainda sente e precisa de amor.”

Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira. Talvez um dia tenha coragem de lha dar.

Hoje acordei cedo com o barulho da chuva nas janelas. Fiz chá e sentei-me à mesa da cozinha a olhar para as fotografias antigas: eu jovem com bata branca no hospital; os meus filhos pequenos no jardim zoológico; o António — meu marido — sorridente ao meu lado antes da doença o levar cedo demais.

Sinto falta dele todos os dias. Com ele nunca me senti invisível.

A vida na reforma não é como nos filmes ou nos folhetos dos bancos: não há viagens nem tardes felizes garantidas. Há contas por pagar, saudades por matar e silêncios por preencher.

Mas ainda assim tento encontrar beleza nas pequenas coisas: no cheiro do café pela manhã; no sorriso tímido da Matilde; no calor do sol quando consigo sair ao jardim; numa palavra amiga trocada com a Dona Lurdes.

Pergunto-me muitas vezes: será que os nossos filhos algum dia vão perceber tudo o que fizemos por eles? Ou será este o destino das mães portuguesas — darem tudo até ao fim e depois serem esquecidas?

E vocês? Também sentem esta solidão? Ou será só mais uma sombra entre tantas outras?