Sob o Peso das Palavras Não Ditas: A Minha Luta por Liberdade
— Não posso mais, mãe! — gritei, a voz embargada, as mãos trêmulas sobre a mesa da cozinha. — Disseste que eu devia tomar conta desta casa, mas agora tudo o que corre mal é culpa minha?
O silêncio que se seguiu foi mais pesado do que qualquer palavra. A minha mãe olhou-me com aqueles olhos frios, tão diferentes dos olhos que me embalavam em criança. O relógio da parede marcava onze da noite, mas o tempo parecia suspenso, como se o mundo inteiro estivesse à espera do próximo movimento.
Desde pequena, vivi sob um teto onde o amor era medido em tarefas feitas e notas na escola. Chamo-me Mariana, tenho 27 anos e cresci num bairro antigo de Lisboa, onde as paredes são finas e os segredos ainda mais. O meu pai saiu de casa quando eu tinha oito anos. Lembro-me da porta a bater, do cheiro a café frio e da minha mãe a dizer: “Agora somos só nós as duas.” Mas nunca fomos realmente duas. Eu era uma extensão dela, uma sombra que devia obedecer sem questionar.
Aos dez anos, já sabia fazer arroz sem queimar, passar a ferro as camisas dela e esconder as lágrimas quando ela me chamava de ingrata. “Tens tudo o que precisas, Mariana. Não te queixes.” Mas eu não queria coisas. Queria espaço para ser eu.
Na escola, invejava as colegas que podiam ir ao cinema ou dormir em casa umas das outras. A minha mãe dizia sempre: “A rua não te ensina nada de bom.” Cresci a ouvir que o mundo lá fora era perigoso e que só ela sabia o que era melhor para mim.
Quando entrei na faculdade, pensei que finalmente ia respirar. Mas ela arranjou maneira de me manter por perto: “Não vais para fora estudar. Lisboa tem boas universidades.” E assim fiquei, presa entre os livros e os olhares dela.
Os anos passaram e fui aprendendo a calar-me. A engolir os sonhos pequenos — uma viagem sozinha, um curso de teatro, um namoro sem ter de esconder mensagens no telemóvel. Até ao dia em que conheci o Tiago.
O Tiago era diferente de todos os rapazes do bairro. Tinha um sorriso fácil e uma paciência infinita para ouvir os meus silêncios. Começámos a sair às escondidas. Ele dizia: “Um dia ainda vais conseguir dizer-lhe tudo.” Eu ria-me, sem acreditar.
Mas naquela noite, depois de mais uma discussão por causa do jantar atrasado e das meias dela perdidas, explodi. Disse-lhe tudo: que estava cansada, que queria viver a minha vida, que não era responsável pela felicidade dela.
Ela levantou-se devagar, como se cada palavra minha fosse um golpe. — És igual ao teu pai — sussurrou. — Também ele só pensava em si.
Senti o chão fugir-me dos pés. O nome dele era sempre a arma final. O silêncio voltou, cortado apenas pelo som do meu choro contido.
Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na cama, a olhar para as paredes cobertas de fotografias antigas: eu em criança, ela a sorrir ao meu lado, o meu pai sempre ausente mesmo quando estava presente. Pensei em sair de casa naquela mesma hora, mas faltou-me coragem.
No dia seguinte, tentei falar com ela. — Mãe, precisamos de conversar.
Ela virou-me as costas. — Não tenho nada para dizer a quem não respeita a própria mãe.
Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e portas fechadas. O Tiago ligava-me todos os dias. “Vem para minha casa uns dias”, sugeriu. Mas eu sentia-me presa entre dois mundos: o da culpa e o do desejo de liberdade.
Uma tarde, ao chegar a casa mais cedo do trabalho, ouvi-a ao telefone com a minha tia Rosa:
— A Mariana está impossível. Não sei onde foi buscar estas ideias… Só me dá desgostos.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que nunca podia ser suficiente? Porque é que querer ser feliz era sempre visto como egoísmo?
Nessa noite, sentei-me à mesa com ela. — Mãe, vou sair de casa.
Ela largou os talheres como se tivessem queimado os dedos. — Vais deixar-me sozinha? Depois de tudo o que fiz por ti?
— Não te estou a deixar. Só preciso de espaço para mim.
— És ingrata! — gritou ela, lágrimas nos olhos. — Tudo o que tens fui eu que te dei!
— E tudo o que perdi também…
Ela levantou-se e saiu da sala. Fiquei ali sentada muito tempo, a ouvir o eco das nossas vozes na casa vazia.
No dia seguinte fiz as malas. O Tiago veio buscar-me. A minha mãe não apareceu à porta para se despedir. Senti um vazio enorme, como se estivesse a trair uma parte de mim mesma.
Os primeiros dias na casa do Tiago foram estranhos. Sentia-me livre mas também perdida. Não sabia cozinhar só para mim; não sabia adormecer sem ouvir os passos dela no corredor.
Uma noite acordei com saudades do cheiro do café dela pela manhã. Liguei-lhe. Ela atendeu em silêncio.
— Mãe…
— Estás bem? — perguntou ela, seca.
— Estou… Só queria saber se precisas de alguma coisa.
— Agora já não preciso de ninguém — respondeu ela antes de desligar.
Chorei baixinho no ombro do Tiago. Ele abraçou-me sem dizer nada.
Os meses passaram e fui aprendendo a viver por minha conta: paguei contas atrasadas, perdi autocarros, chorei por não saber montar um móvel do IKEA sozinha. Mas também ri como nunca tinha rido antes: dançámos na sala às três da manhã, fizemos jantares com amigos novos, viajei até ao Porto só porque sim.
No Natal tentei voltar a casa da minha mãe. Levei um bolo feito por mim e um presente simples: um cachecol azul igual ao que ela usava quando eu era pequena.
Ela abriu a porta com ar cansado. Olhou para mim como se eu fosse uma estranha.
— Vim desejar-te um Feliz Natal…
Ela não respondeu logo. Depois disse:
— O Natal já não é o mesmo sem ti aqui.
Ficámos as duas em silêncio na sala durante muito tempo. Depois sentei-me ao lado dela no sofá e ficámos ali, sem saber como recomeçar.
Hoje escrevo esta história porque sei que há muitas Marianas por aí — filhas presas entre o amor e a culpa, mães presas entre o medo e o orgulho. Pergunto-me todos os dias: será errado querer ser feliz à minha maneira? Ou será que todas as mães acabam por perceber que amar também é deixar partir?