Sob o Olhar Implacável: O Controle da Minha Mãe Nunca Teve Limites

— Tu achas mesmo que podes viver sem mim, Miguel? — a voz da minha mãe ecoou pela sala, carregada de uma raiva fria que me fez estremecer. Eu estava parado à porta do meu próprio apartamento, com as mãos trémulas e o coração aos pulos, enquanto Dona Lurdes, de casaco bege impecável e olhar cortante, me fitava como se eu fosse um miúdo apanhado a fazer asneiras.

Nunca pensei que a minha vida adulta começasse assim: aos trinta e dois anos, ainda a sentir-me um prisioneiro das vontades da minha mãe. Cresci em Almada, num T2 pequeno mas arrumado, onde cada objeto tinha o seu lugar — e cada decisão, a sua aprovação. O meu pai morreu cedo, e Dona Lurdes fez questão de me lembrar todos os dias que eu era o homem da casa. Mas ser o homem da casa dela nunca me preparou para ser o homem da minha própria vida.

Quando finalmente consegui arrendar este apartamento em Lisboa, pensei que ia respirar fundo pela primeira vez. Mas Dona Lurdes nunca aceitou a minha saída. “É só uma fase”, dizia às vizinhas. “Ele volta logo para casa.” Só que eu não voltei. E ela nunca me perdoou por isso.

No início, as visitas eram semanais. Depois, passaram a ser diárias. Um dia, cheguei a casa e encontrei-a a passar a ferro as minhas camisas. Noutra vez, estava a reorganizar os meus livros por ordem alfabética. Perguntei-lhe como tinha entrado. Ela sorriu e tirou uma chave do bolso.

— Fiz uma cópia. Nunca se sabe quando vais precisar de mim.

A minha namorada, Sofia, não aguentou muito tempo. “A tua mãe está sempre aqui, Miguel! Não tenho espaço para respirar!” — gritava ela, antes de sair porta fora com as malas na mão. Fiquei sozinho outra vez, mas Dona Lurdes continuava lá. Sempre lá.

— Não percebo porque é que insistes em viver assim — disse ela hoje, enquanto pousava um saco de compras na bancada da cozinha. — Esta casa está um caos. Olha para isto! — apontou para uma chávena esquecida na mesa.

— Mãe, eu não te pedi para vires cá — tentei manter a voz firme, mas soou mais como um sussurro desesperado.

Ela ignorou-me e começou a arrumar as compras nos armários. Senti-me pequeno, esmagado pelo peso do seu amor sufocante. Tentei lembrar-me de quando foi a última vez que tomei uma decisão sem pensar no que ela ia dizer. Não consegui.

Naquela noite, sentei-me na cama com o telemóvel na mão. Liguei ao meu irmão mais velho, Rui, que vive no Porto há anos e raramente fala connosco.

— Rui, como é que tu conseguiste? — perguntei-lhe, quase em lágrimas.

Ele suspirou do outro lado da linha.

— Fui embora e deixei de atender o telefone durante meses. Ela acabou por aceitar. Mas tu sempre foste o preferido dela…

Preferido ou prisioneiro? A pergunta ficou a ecoar na minha cabeça.

No dia seguinte, quando Dona Lurdes apareceu outra vez sem avisar, decidi que era agora ou nunca.

— Mãe, precisamos de conversar — disse-lhe, bloqueando-lhe a passagem para a sala.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— O que foi agora?

— Não podes continuar a entrar aqui quando te apetece. Esta é a minha casa! Preciso do meu espaço!

O silêncio caiu pesado entre nós. Ela pousou o saco das compras no chão e cruzou os braços.

— Achas que faço isto por mim? Faço-o por ti! Porque sei que sozinho não te safas!

— Não é verdade! — gritei, surpreendendo-me com a força da minha própria voz. — Eu preciso de aprender a viver sozinho! Preciso de errar, de arrumar as minhas coisas à minha maneira… Preciso de ser eu!

Ela ficou imóvel durante uns segundos eternos. Depois, os olhos dela encheram-se de lágrimas — mas não eram lágrimas de tristeza; eram de raiva contida.

— Ingrato! Depois de tudo o que fiz por ti…

— Eu agradeço tudo o que fizeste, mãe. Mas agora tens de me deixar crescer.

Ela pegou no saco das compras e saiu sem dizer mais nada. O som da porta a bater ecoou pelo apartamento vazio.

Naquela noite não dormi. Senti-me culpado e aliviado ao mesmo tempo. Passei horas a olhar para o teto, a pensar em todas as vezes que me calei para não magoar a minha mãe. Em todas as oportunidades que perdi por medo de desiludi-la.

Os dias seguintes foram estranhos. Dona Lurdes deixou de aparecer sem avisar. Mandava mensagens curtas: “Precisas de alguma coisa?” Eu respondia sempre: “Não, mãe.” Mas sentia falta dela — ou talvez sentisse falta da rotina sufocante a que estava habituado.

Um mês depois, recebi uma carta dela. Escreveu à mão:

“Miguel,
Sei que estás zangado comigo. Só queria proteger-te do mundo porque sei como ele pode ser cruel. Mas talvez tenha exagerado… Não sei viver sem cuidar de ti. Espero que um dia me perdoes.
Com amor,
Mãe”

Chorei ao ler aquelas palavras. Pela primeira vez vi Dona Lurdes como uma mulher assustada e não apenas como uma mãe controladora. Liguei-lhe nesse dia e combinámos almoçar juntos no domingo seguinte — num restaurante escolhido por mim.

A relação nunca voltou a ser igual. Ainda discutimos muito, mas agora há limites claros entre nós. Às vezes sinto-me egoísta por querer distância; outras vezes sinto-me finalmente livre.

Será possível amar alguém e ao mesmo tempo precisar tanto de espaço? Quantos de nós vivem presos ao medo de desiludir quem mais amam?