Sob o Microscópio da Minha Mãe: O Dia em Que Tudo Mudou

— Onde vais, Inês? — A voz da minha mãe ecoou pelo corredor, cortando o silêncio da manhã como uma faca afiada. Eu já tinha a mão na maçaneta da porta, mochila às costas, coração aos pulos.

— Vou só estudar com a Rita, mãe. Já te disse ontem — respondi, tentando soar casual, mas sentindo o suor frio escorrer-me pelas costas.

Ela apareceu à porta da cozinha, avental manchado de café e olhos semicerrados de desconfiança. — Estudar? Com a Rita? A mãe dela não está em casa hoje. Sabes que não gosto dessas coisas. E a Rita… bem, sabes que não confio nela desde aquele episódio no verão passado.

Suspirei, sentindo o peso de anos de vigilância apertar-me o peito. Desde que me lembro, a minha mãe sempre soube tudo: onde estava, com quem estava, o que comia, o que pensava. Quando era pequena, achava reconfortante. Agora, aos dezassete anos, era uma prisão.

— Mãe, por favor… Preciso mesmo de sair um bocado. Não aguento mais estar fechada em casa — tentei argumentar, mas sabia que era inútil. Ela aproximou-se, baixando a voz:

— Não percebes que é para o teu bem? O mundo lá fora é perigoso. As pessoas não são como parecem. Eu só quero proteger-te.

Ouvia sempre esta ladainha. Mas proteger ou controlar? O meu pai, António, tentava intervir às vezes, mas acabava sempre por ceder ao temperamento dela. O meu irmão mais novo, Tiago, era demasiado pequeno para perceber.

Nesse dia, algo em mim quebrou. Senti uma raiva surda crescer-me no peito. — Não sou tua prisioneira! — gritei, surpreendendo-me até a mim própria.

O silêncio caiu pesado entre nós. Ela olhou-me como se eu tivesse acabado de a trair. — Não te admito esse tom! Enquanto viveres nesta casa, fazes o que eu digo!

Corri para o meu quarto e fechei a porta com força. Sentei-me na cama, lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. Peguei no telemóvel e escrevi à Rita: “Não vou conseguir sair. A minha mãe está impossível.”

Ela respondeu quase de imediato: “Inês, tens de fazer alguma coisa. Não podes viver assim para sempre.”

Passei o resto do dia fechada no quarto, ouvindo os passos da minha mãe no corredor, sentindo o olhar dela mesmo através das paredes. À noite, ouvi-a discutir com o meu pai:

— António, ela está a fugir-me das mãos! Está a mentir-me! — dizia ela, voz trémula.

— Maria do Carmo, ela só quer um pouco de liberdade… — tentava ele apaziguar.

— Liberdade? E se lhe acontece alguma coisa? E se ela se mete em sarilhos? Não vou deixar!

No dia seguinte, decidi agir. Esperei até todos estarem a dormir e saí pela janela do meu quarto para ir ter com a Rita ao jardim público. O ar fresco da noite soube-me a liberdade e medo ao mesmo tempo.

— Estás mesmo aqui! — exclamou a Rita quando me viu. — Não acredito que conseguiste!

Sentámo-nos num banco e falámos durante horas sobre tudo: sonhos, medos, planos para fugir dali quando acabássemos o secundário. Pela primeira vez em muito tempo senti-me viva.

Quando voltei a casa, já o sol nascia. Entrei pé ante pé, mas a minha mãe estava sentada na sala à minha espera. Os olhos vermelhos de chorar.

— Onde estiveste? — perguntou num sussurro assustadoramente calmo.

— Preciso de respirar! Preciso de ser eu! — gritei-lhe.

Ela levantou-se e abraçou-me com força. — Tenho tanto medo de te perder… — murmurou.

Afastei-a suavemente. — Mas assim já me perdeste há muito tempo.

Nos dias seguintes, o ambiente em casa tornou-se insuportável. A minha mãe seguia-me com os olhos por todo o lado; o meu pai evitava olhar-me nos olhos; o Tiago perguntava porque é que eu chorava tanto à noite.

Uma tarde, ouvi a minha mãe ao telefone com a minha tia Rosa:

— Não sei o que fazer à Inês… Está irreconhecível! Só me responde torto… Achas que estou a exagerar?

A tia Rosa tentou acalmá-la: — Maria do Carmo, tu sempre foste assim… Mas ela precisa de espaço para crescer. Lembras-te de como eras com os teus pais?

A minha mãe ficou em silêncio longo tempo antes de responder: — Pois… Mas eu só quero evitar que ela sofra como eu sofri.

Nesse momento percebi: ela não era só controladora; era uma mulher cheia de medos antigos e feridas mal saradas.

Na escola comecei a ter más notas; os professores chamaram os meus pais para uma reunião. A minha mãe chorou à frente da diretora:

— Eu só quero o melhor para ela! Porque é que ninguém percebe?

A diretora olhou para mim com compaixão: — Maria do Carmo, às vezes amar é saber largar.

Em casa houve gritos, portas a bater, silêncios intermináveis. O meu pai tentou convencer-me a pedir desculpa; eu recusei-me. Senti-me sozinha como nunca.

Numa noite chuvosa, decidi fugir de casa. Arrumei algumas roupas numa mochila e escrevi uma carta:

“Mãe,
Não aguento mais viver assim. Preciso de encontrar quem sou sem ti sempre a olhar por cima do ombro. Amo-te, mas preciso de ir.”

Saí sem olhar para trás. Fui para casa da Rita; os pais dela receberam-me sem perguntas.

Durante dias não tive notícias dos meus pais. Até que um dia recebi uma mensagem do meu irmão:

“A mãe não sai da cama há dois dias.”

O peso da culpa caiu-me em cima como um manto molhado. Liguei-lhe:

— Mãe?

Do outro lado ouvi apenas soluços.

— Volta para casa… Por favor…

Voltei naquela noite. Encontrámo-nos na cozinha escura; abraçámo-nos sem dizer nada durante muito tempo.

A partir desse dia as coisas mudaram devagarinho. A minha mãe começou terapia; eu também. Aprendemos a falar sem gritar, a ouvir sem julgar.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mães vivem presas ao medo de perder os filhos? Quantos filhos fogem sem perceber as feridas dos pais?

E vocês? Já sentiram que precisavam fugir para poderem ser vocês próprios?