Sob o Mesmo Teto: Entre a Sogra e o Amor
— Não é assim que se faz o arroz, Mariana! — A voz da Dona Teresa cortou o silêncio da manhã como uma faca afiada. Eu estava de costas para ela, tentando não deixar transparecer o tremor nas minhas mãos. O cheiro do refogado subia, misturando-se ao nervosismo que me apertava o peito.
— Eu faço como a minha mãe me ensinou, Dona Teresa — respondi, esforçando-me por manter a voz calma, mas sentindo o rubor subir-me às faces.
Ela bufou, aproximando-se para espreitar por cima do meu ombro. — Pois aqui em casa faz-se à minha maneira. — E pegou na colher de pau das minhas mãos, como se eu fosse uma criança apanhada em falta.
Foi assim que começou mais um dia sob o mesmo teto da sogra. Quando eu e o Rui casámos, nunca imaginei que acabaríamos a viver com ela. Era suposto ser temporário — só até conseguirmos juntar dinheiro para um apartamento nosso. Mas os meses foram passando, e cada semana parecia mais longa do que a anterior.
O Rui tentava ser o mediador. — Mãe, deixa a Mariana em paz. Ela sabe cozinhar — dizia ele, mas sem grande convicção. Eu via-lhe nos olhos o cansaço de quem está preso entre duas mulheres que ama de formas diferentes.
À noite, deitávamo-nos lado a lado na cama estreita do antigo quarto de infância dele. O colchão rangia sempre que um de nós se mexia. — Achas que ela algum dia vai aceitar-me? — perguntei-lhe uma vez, baixinho, com medo de que a Dona Teresa ouvisse através das paredes finas.
O Rui suspirou, puxando-me para junto dele. — Ela é assim com toda a gente. Dá-lhe tempo.
Mas o tempo parecia ser precisamente aquilo que não tínhamos. Cada dia trazia uma nova picardia: as roupas que eu lavava e ela voltava a pôr no cesto porque “não estavam bem passadas”; os pratos que eu arrumava e ela voltava a tirar do armário para “ensinar como se faz”; até as compras do supermercado eram motivo de discussão.
— Mariana, aqui em casa só se compra azeite daquela marca! — exclamou ela um dia, ao ver as minhas escolhas no saco das compras.
— Mas este estava em promoção… — tentei justificar-me.
Ela olhou-me como se eu tivesse cometido um crime.
Comecei a evitar os pequenos-almoços em família. Saía de casa cedo, inventando compromissos ou prolongando as idas ao supermercado só para respirar um pouco de liberdade. Sentia-me uma intrusa na minha própria vida.
A minha mãe ligava-me todos os domingos. — Como vai isso, filha? — perguntava ela, sempre com aquela voz doce que me fazia falta.
— Vai-se andando… — respondia eu, tentando não chorar.
Ela sabia ler nas entrelinhas. — Não deixes que te apaguem, Mariana. Tu és forte.
Mas havia dias em que não me sentia nada forte. Havia dias em que me apetecia fazer as malas e fugir dali para sempre.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o modo “correto” de dobrar os lençóis, fechei-me na casa de banho e chorei baixinho. O Rui bateu à porta.
— Mariana… abre, por favor.
Abri a porta devagarinho. Ele abraçou-me com força.
— Não aguento mais isto — sussurrei-lhe ao ouvido. — Ou encontramos uma solução ou eu vou embora.
Ele ficou calado durante uns segundos eternos. — Amanhã vou falar com ela. Prometo.
Na manhã seguinte, ouvi-os na cozinha. A voz dele era firme:
— Mãe, tens de perceber que a Mariana é minha mulher. Se continuas assim, vamos ter de sair daqui antes do previsto.
Houve um silêncio pesado antes da resposta dela:
— Achas que é fácil para mim? Sempre fui só eu e tu nesta casa! Agora tenho de partilhar tudo… até ti!
Senti uma pontada de compaixão pela Dona Teresa. Pela primeira vez vi-a como uma mulher sozinha, agarrada às rotinas porque tinha medo de perder o filho para outra mulher.
Nesse dia tentei conversar com ela. Sentei-me à mesa da cozinha enquanto ela descascava batatas.
— Dona Teresa… sei que não sou perfeita e que faço as coisas de maneira diferente da sua. Mas queria muito que nos déssemos bem. O Rui precisa disso… e eu também.
Ela não respondeu logo. Continuou a descascar batatas com movimentos mecânicos.
— Eu sei que sou difícil — disse ela por fim, sem me olhar nos olhos. — Mas também não é fácil ver o meu filho crescer e deixar de ser só meu.
Ficámos ali sentadas em silêncio durante uns minutos longos demais para serem confortáveis. Mas naquele silêncio nasceu qualquer coisa nova: uma trégua frágil, talvez até um princípio de entendimento.
Os dias seguintes foram menos tensos. Começámos a dividir tarefas sem tantas críticas; até cozinhámos juntas uma ou outra vez, cada uma à sua maneira. Não éramos amigas, mas já não éramos inimigas declaradas.
O Rui arranjou um segundo emprego e começámos finalmente a ver a conta-poupança crescer. Falávamos cada vez mais sobre o nosso futuro fora dali: um apartamento pequeno mas só nosso, onde pudéssemos errar à vontade sem sermos julgados.
No último jantar antes de sairmos daquela casa, a Dona Teresa fez arroz à moda dela e pediu-me para ajudar. Sorri-lhe e aceitei sem hesitar.
Quando fechámos a porta atrás de nós pela última vez, senti um alívio imenso mas também uma pontinha de saudade inesperada. Afinal, foi ali que aprendi tanto sobre mim mesma e sobre o amor: que às vezes é preciso lutar por ele até dentro da própria família.
Agora pergunto-me: quantos casais sobrevivem ao teste de viver sob o mesmo teto dos sogros? E será que aprendemos realmente alguma coisa sobre nós próprios quando somos postos à prova assim?