“Só um pouco para comer!” – Como um pedido mudou tudo na minha família
— Só um pouco para comer, menina… — ouvi aquela voz rouca, quase sumida, enquanto atravessava apressada a Rua Augusta, em Lisboa. O homem estava sentado no chão, encostado à parede de uma pastelaria, com os olhos baixos e as mãos trémulas estendidas. O cheiro a café fresco misturava-se com o odor agridoce da cidade húmida e dos corpos cansados. Parei, hesitante, sentindo o olhar dos outros transeuntes a pesar sobre mim.
— Desculpe… não tenho trocos — menti, envergonhada, enquanto apertava a carteira contra o peito. Senti-me imediatamente suja por dentro. Não era verdade: tinha moedas, mas também tinha medo. Medo de ser enganada, medo de me envolver, medo de olhar para aquela miséria de frente.
O caminho até casa foi um suplício. As palavras do homem ecoavam na minha cabeça: “Só um pouco para comer”. Lembrei-me do meu pai, António, sempre tão desconfiado: “Esses pedintes só querem dinheiro para droga! Não sejas ingénua, Mariana.” E da minha mãe, Teresa, que suspirava: “Não podemos ajudar toda a gente, filha…”
Quando cheguei ao nosso pequeno apartamento em Benfica, encontrei-os à mesa da cozinha. O cheiro a sopa de legumes enchia o ar. Sentei-me em silêncio, mexendo no pão sem vontade.
— Que cara é essa? — perguntou o meu pai, sem levantar os olhos do jornal.
— Nada… só estou cansada — respondi, mas a minha mãe percebeu logo que algo não estava bem.
— Mariana, aconteceu alguma coisa?
Olhei para eles e senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que éramos sempre tão rápidos a julgar? Porque é que nunca dávamos o benefício da dúvida?
— Vi um homem na rua a pedir dinheiro para comer. Não lhe dei nada. Senti-me horrível — confessei, com a voz embargada.
O meu pai largou o jornal com força.
— Lá estás tu com essas ideias! Achas que és melhor do que nós? Achas que és santa? — A sua voz era dura, mas percebia-se ali uma sombra de medo.
— António… — tentou intervir a minha mãe.
— Não é isso! Só… só me senti mal. E se ele realmente só quisesse comer? E se fosse eu ali? — As lágrimas ameaçavam cair.
O silêncio caiu sobre nós como uma nuvem negra. A colher da minha mãe tremia na mão.
— Mariana, tu não sabes o que é passar fome — disse ela baixinho. — Eu sei. Quando era pequena, havia dias em que só tínhamos pão duro e água. Mas também aprendi que não podemos confiar em toda a gente.
— Mas mãe… — comecei, mas ela interrompeu-me.
— Não é falta de coração. É medo. Medo de sermos enganados, medo de não termos para nós.
O meu pai levantou-se bruscamente e saiu da cozinha. Ficámos as duas em silêncio. Senti-me dividida entre a compaixão e a raiva pela frieza deles.
Nessa noite não consegui dormir. A imagem do homem perseguia-me. Lembrei-me da infância da minha mãe em Trás-os-Montes, das histórias de pobreza e dignidade. Lembrei-me do meu pai a trabalhar horas extras para pagar as contas. E pensei: será que nos tornámos todos demasiado duros? Será que o medo nos roubou a empatia?
No dia seguinte, decidi voltar à Rua Augusta. O homem ainda lá estava. Sentei-me ao lado dele, ignorando os olhares curiosos.
— Olá… ontem não consegui ajudar. Mas hoje trouxe-lhe um pão e uma sopa — disse-lhe, estendendo-lhe o saco.
Ele olhou para mim com surpresa e um sorriso tímido iluminou-lhe o rosto.
— Obrigado… como se chama?
— Mariana.
— Eu sou o Joaquim. Já fui pedreiro… mas depois do acidente fiquei assim… — apontou para a perna enfaixada e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
Conversámos durante quase meia hora. Ouvi histórias de trabalho duro, de quedas e azares, de uma família que se afastou por vergonha ou cansaço. Senti uma dor funda no peito: podia ser o meu pai ali sentado.
Quando cheguei a casa, contei tudo à minha mãe. Ela ouviu-me em silêncio e depois abraçou-me com força.
— És mais corajosa do que eu fui alguma vez — sussurrou.
Mas o meu pai não reagiu bem quando soube.
— Agora vais dar comida a todos os mendigos de Lisboa? Queres ser assaltada? Queres meter-te em sarilhos? — gritou ele, batendo com a mão na mesa.
Discutimos durante horas naquela noite. Ele acusou-me de ser ingénua, eu acusei-o de ser insensível. A minha mãe chorava baixinho no canto da cozinha.
Nos dias seguintes, o ambiente em casa tornou-se insuportável. O meu pai mal falava comigo; eu sentia-me cada vez mais isolada. Comecei a evitar as refeições em família e passava mais tempo na rua ou na biblioteca da faculdade.
Uma tarde, ao regressar a casa mais cedo, ouvi os meus pais a discutir na sala:
— Ela tem bom coração! Não podes sufocá-la assim! — dizia a minha mãe.
— E se lhe acontece alguma coisa? Já viste como está esta cidade? Não quero perder a minha filha por causa de um estranho! — respondeu o meu pai, com a voz embargada pela preocupação.
Senti uma pontada de culpa: será que estava mesmo a ser irresponsável? Ou será que era ele quem estava prisioneiro dos próprios medos?
Na semana seguinte voltei a encontrar o Joaquim. Desta vez levei-lhe um casaco velho do meu irmão e um termo com chá quente. Ele sorriu-me com gratidão e contou-me que tinha conseguido arranjar um lugar numa pensão social graças à ajuda de uma assistente social que passava por ali todos os dias.
— Às vezes basta alguém ouvir-nos… — disse ele baixinho.
Voltei para casa com o coração leve pela primeira vez em semanas. Quando contei aos meus pais sobre o Joaquim e a pensão social, vi algo mudar no olhar do meu pai: talvez orgulho misturado com receio.
Nessa noite sentámo-nos à mesa sem discussões. O meu pai serviu-me sopa e disse apenas:
— Só quero que estejas bem…
Abracei-o com força e percebi que o medo dele era só amor disfarçado de dureza.
Hoje continuo a passar pela Rua Augusta sempre que posso. Cumprimento o Joaquim quando o vejo e tento não julgar tão depressa quem me pede ajuda na rua. Sei que não posso salvar todos, mas posso escolher não ser indiferente.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes deixámos o medo vencer o nosso coração? E vocês? O que fariam no meu lugar?