“Só um jantar, qual é o problema?” – Uma noite que mudou tudo
— Só um jantar, qual é o problema, Marta? — perguntou o Rui, largando os talheres na mesa com um estrondo que ecoou pela sala. O Miguel, nosso filho mais novo, olhou para mim com aqueles olhos grandes, assustados. A Inês, adolescente e já farta dos nossos silêncios tensos, revirou os olhos e saiu da mesa sem dizer palavra. Eu fiquei ali, sentada, com o peito apertado e as mãos a tremer.
O problema não era o jantar. Nunca foi. O problema era tudo aquilo que eu engoli durante anos — as vontades caladas, os sonhos adiados, os pedidos ignorados. O Rui queria sair com os amigos, como fazia todas as quintas-feiras. Eu só queria que ele percebesse que eu também precisava de sair, de respirar, de ser mais do que mãe e dona de casa.
— O problema é que nunca perguntas se eu quero ir contigo — respondi finalmente, a voz embargada. — Nunca te lembras que eu também existo para além desta mesa.
O Rui olhou para mim como se eu tivesse dito a coisa mais absurda do mundo.
— Estás a exagerar, Marta. Precisas de relaxar. Isto são só fases.
Fases. Como se a minha vida fosse uma estação de comboio onde ele só parava quando lhe apetecia.
Levantei-me da mesa e fui para a varanda. O ar frio da noite de Lisboa cortou-me a pele, mas não me importei. Olhei para as luzes da cidade e perguntei-me: quando foi a última vez que fiz algo só por mim? Quando foi a última vez que alguém me perguntou o que eu queria?
Lembrei-me da minha mãe, sempre tão submissa ao meu pai. Sempre a dizer “não faças ondas, Marta”. Mas eu sentia-me a afogar.
Naquela noite não dormi. O Rui chegou tarde, a cheirar a cerveja e risos alheios. Deitou-se ao meu lado sem dizer nada. Eu virei costas.
No dia seguinte, acordei cedo e fui trabalhar. No escritório, ninguém imaginava o que se passava em casa. Era a Marta eficiente, sempre pronta a ajudar, sempre com um sorriso. Mas por dentro sentia-me vazia.
A minha colega Ana percebeu logo.
— Estás bem? — perguntou ela na pausa do café.
Quis dizer-lhe tudo, mas limitei-me a encolher os ombros.
— Só estou cansada.
Mas não era cansaço físico. Era um cansaço da alma.
Naquela semana, decidi fazer algo diferente. Liguei à minha irmã, Sofia.
— Preciso de sair — disse-lhe. — Só nós as duas. Como antigamente.
Ela ficou surpreendida, mas aceitou logo. Marcámos um jantar para sexta-feira.
Quando contei ao Rui, ele ficou incrédulo.
— Vais sair? E as crianças?
— O Miguel já tem dez anos e a Inês quinze. Podem ficar contigo uma noite — respondi, tentando não tremer.
Ele bufou.
— Faz como quiseres.
Na sexta-feira, vesti um vestido que já não usava há anos. Olhei-me ao espelho e quase não me reconheci. Havia ali uma mulher que queria viver.
O jantar com a Sofia foi libertador. Rimos, chorámos, falámos de tudo o que nunca se diz em casa. Contei-lhe do vazio, da solidão dentro do casamento.
— Tens de falar com ele — disse ela. — Não podes continuar assim.
Voltei para casa tarde. O Rui estava acordado no sofá.
— Divertiste-te? — perguntou com ironia.
— Sim — respondi simplesmente.
Ele ficou calado durante uns segundos.
— Isto vai ser assim agora? Cada um faz o que quer?
Sentei-me à frente dele.
— Não quero viver numa prisão. Quero sentir que também conto nesta casa.
Ele levantou-se bruscamente.
— Sempre foste dramática, Marta.
As palavras dele magoaram mais do que qualquer grito.
Nos dias seguintes, o ambiente ficou insuportável. O Miguel começou a perguntar se íamos divorciar-nos. A Inês trancava-se no quarto com os fones nos ouvidos. Eu sentia-me culpada por ter mexido no equilíbrio frágil da família, mas ao mesmo tempo sabia que não podia voltar atrás.
Uma noite, depois de todos se deitarem, sentei-me na cozinha com uma chávena de chá nas mãos. As lágrimas caíam-me pelo rosto sem controlo. Lembrei-me do dia em que casei com o Rui — tão apaixonados, tão cheios de planos. Onde é que nos perdemos?
No sábado seguinte, decidi falar com os meus filhos.
— Sei que as coisas estão estranhas cá em casa — comecei, a voz trémula. — Mas às vezes precisamos de mudar para sermos felizes.
O Miguel abraçou-me em silêncio. A Inês olhou para mim com lágrimas nos olhos.
— Eu só quero que parem de discutir — sussurrou ela.
Prometi-lhe que ia tentar.
O Rui continuava distante. Começou a chegar mais tarde ainda, evitava olhar-me nos olhos. Uma noite ouvi-o ao telefone na varanda:
— Não sei quanto tempo mais aguento isto…
O coração apertou-se-me no peito. Será que ele tinha outra pessoa? Ou será que simplesmente já não me amava?
No domingo à tarde, sentei-me com ele na sala.
— Precisamos de falar — disse-lhe.
Ele suspirou.
— Já sei o que vais dizer…
— Não sabes — interrompi-o. — Quero saber se ainda vale a pena lutarmos por isto.
Ele ficou calado durante muito tempo. Finalmente falou:
— Não sei responder-te agora.
A honestidade dele doeu mais do que qualquer mentira.
Os dias passaram lentos e pesados. Comecei a sair mais vezes com a Sofia e com amigas do trabalho. Descobri hobbies antigos: voltei a pintar, inscrevi-me numa aula de ioga. Aos poucos fui sentindo uma força nova dentro de mim — uma vontade de viver para além dos papéis impostos pela família e pela sociedade portuguesa tão tradicionalista.
O Rui percebeu a mudança. Um dia chegou mais cedo e trouxe flores — coisa rara nele.
— Desculpa — disse apenas. — Acho que nunca te vi realmente.
Chorei nos braços dele como há anos não fazia. Falámos durante horas sobre tudo: sobre os medos dele, sobre os meus sonhos esquecidos, sobre os filhos e o futuro incerto.
Não foi fácil reconstruir-nos depois disso. Houve recaídas, discussões feias, silêncios longos. Mas pela primeira vez em muito tempo senti esperança.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem caladas dentro das suas próprias casas? Quantas Martas há por aí? Será preciso chegar ao limite para sermos ouvidas?