Sinais Perdidos – O Arrependimento de uma Sogra
— Então é isso, mãe? Vais mesmo deixar tudo para a Joana? — perguntou o Miguel, a voz tremendo, enquanto pousava a colher na borda do prato. O cheiro do caldo de galinha pairava no ar, mas ninguém parecia ter apetite.
Eu olhei para ele, para a minha nora Joana e para os meus dois netos, sentados em silêncio. O relógio da parede marcava três horas da tarde, mas o tempo parecia suspenso. O anúncio do meu testamento caiu como uma pedra no meio da sala. Não era apenas sobre bens ou dinheiro; era sobre anos de ressentimento, de palavras engolidas e gestos mal interpretados.
— Não é isso, Miguel. Não é uma questão de deixar ou não deixar. É uma questão de justiça — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo o nó na garganta apertar.
A Joana desviou o olhar, mexendo distraidamente no prato do pequeno Tomás. O Diogo, mais velho, fitava-me com aqueles olhos castanhos tão parecidos com os do pai quando era criança. Senti uma pontada no peito — quando foi que tudo se perdeu entre nós?
Lembro-me do primeiro dia em que conheci a Joana. O Miguel trouxe-a cá a casa num domingo chuvoso, o cabelo dela colado à testa, as mãos nervosas a apertar a alça da mala. Eu queria gostar dela, queria mesmo. Mas havia algo nela que me deixava desconfortável — talvez fosse o medo de perder o meu filho para outra mulher, talvez fosse só insegurança minha.
Os anos passaram e as pequenas coisas foram-se acumulando. A Joana nunca fazia o arroz como eu gostava. O Miguel começou a faltar aos almoços de domingo. Os netos passaram a vir menos vezes cá a casa. Eu tentava não mostrar, mas cada ausência era como uma facada.
— Mãe, não percebes que estás a afastar toda a gente? — disse o Miguel uma vez, depois de um Natal especialmente tenso. — A tua maneira de controlar tudo… já ninguém aguenta.
— Eu só quero o melhor para vocês! — gritei-lhe, as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. Mas ele já tinha virado costas.
A partir daí, as visitas tornaram-se esporádicas. Os telefonemas eram curtos, cheios de silêncios desconfortáveis. Comecei a sentir-me invisível na minha própria família.
No verão passado, tentei remediar as coisas. Convidei-os para passarem férias comigo na casa da aldeia em Trás-os-Montes. Preparei tudo como antigamente: comprei os doces preferidos dos meninos, lavei os lençóis de linho da minha mãe, pendurei fotografias antigas nas paredes. Mas eles chegaram cansados, distraídos, sempre agarrados aos telemóveis.
Uma noite, ouvi a Joana chorar no quarto ao lado. Fui ter com ela.
— Joana… está tudo bem? — perguntei baixinho.
Ela limpou as lágrimas rapidamente.
— Está… está sim, D. Teresa. Só estou cansada.
Quis abraçá-la, mas hesitei. Senti-me uma estranha na vida deles.
No último dia das férias, o Miguel chamou-me à parte.
— Mãe, tens de perceber que as coisas mudaram. Não podes esperar que tudo seja como antes.
— Mas eu só quero que estejamos juntos… — murmurei.
Ele suspirou.
— Às vezes parece que só queres estar connosco se for tudo à tua maneira.
Essas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante meses. Comecei a pensar no futuro — e se um dia partisse sem conseguir resolver isto? Foi então que decidi fazer o testamento. Não por vingança ou castigo, mas porque queria deixar alguma ordem no meio do caos.
No almoço de hoje, quando anunciei a decisão, esperava talvez um alívio. Mas vi apenas mágoa nos olhos do Miguel e da Joana.
— Não percebes que isto só nos afasta mais? — disse ela finalmente, a voz baixa mas firme.
O Tomás largou o garfo e correu para o colo do pai. O Diogo levantou-se e foi até à janela, olhando lá para fora como se quisesse fugir dali.
Senti-me sozinha como nunca antes. A casa parecia enorme e fria, cheia de ecos de risos antigos e memórias felizes que agora me pareciam tão distantes.
Depois do almoço, cada um foi para seu lado. Fiquei sentada à mesa, olhando para os pratos vazios e para as migalhas de pão espalhadas pela toalha branca.
Lembrei-me da minha mãe — como ela também era rígida comigo e com os meus irmãos. Como eu prometi a mim mesma que seria diferente quando tivesse filhos. Mas será que fui mesmo?
À noite, liguei à minha irmã Maria.
— Teresa… tens de falar com eles. Pedir desculpa se for preciso. Não deixes isto assim — aconselhou ela.
Mas como pedir desculpa por anos de desencontros? Como desfazer palavras ditas em momentos de raiva?
Os dias passaram devagar. O telefone não tocava. Os netos não vinham brincar ao jardim. A solidão tornou-se uma presença constante.
Uma tarde, fui ao quarto do Miguel e encontrei um desenho antigo do Diogo: nós os quatro de mãos dadas num parque. Chorei como há muito não chorava.
Decidi escrever uma carta ao Miguel:
“Meu filho,
Sei que errei muitas vezes. Sei que quis controlar demais porque tinha medo de perder-te. Mas perdi-te na mesma — e isso dói mais do que tudo. Só queria que soubesses que te amo e que amo a tua família também. Se puderes perdoar-me… estarei sempre aqui.”
Esperei dias por resposta. Finalmente, numa manhã chuvosa, ouvi o portão abrir-se. O Miguel entrou com os meninos pela mão.
— Podemos falar? — perguntou ele.
Sentámo-nos na sala em silêncio durante minutos intermináveis.
— Mãe… eu também errei. Talvez todos tenhamos errado — disse ele finalmente.
A Joana entrou pouco depois, com os olhos vermelhos mas um sorriso tímido nos lábios.
Abraçámo-nos todos ali mesmo, entre lágrimas e promessas de tentar outra vez.
Agora olho para trás e pergunto-me: quantas famílias se perdem por orgulho ou medo? Quantas mães e filhos deixam passar anos sem se entenderem?
Será que ainda vou a tempo de recuperar o tempo perdido? E vocês — já disseram hoje aos vossos o quanto os amam?