Setenta Invernos e Um Silêncio: O Preço da Minha Solidão

— Não me ligues mais, mãe. A Eva não quer — a voz do Diogo soou fria, quase irreconhecível, do outro lado da linha. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. Tentei responder, mas as palavras ficaram presas na garganta, esmagadas pelo medo de perder o meu único filho para sempre.

Lembro-me de quando o Diogo nasceu, numa manhã chuvosa de novembro, no Hospital de Santa Maria. O Artur, meu marido, nem sequer apareceu no hospital. Disse que tinha trabalho, mas eu sabia que era mentira. Sempre foi assim: ausente, distante, mais preocupado com as cartas e os copos do que connosco. Cresci a acreditar que conseguiria proteger o Diogo desse vazio, mas hoje vejo como falhei.

A infância do Diogo foi marcada por discussões. Eu e o Artur gritávamos tanto que às vezes nem ouvíamos o choro do nosso filho no quarto ao lado. Lembro-me de uma noite em particular, quando o Diogo tinha apenas seis anos. O Artur chegou tarde, bêbado, e começou a discutir comigo por causa do dinheiro da renda. O Diogo apareceu na sala, de pijama azul com ursos, e perguntou se íamos divorciar-nos. Senti o coração partir-se em mil pedaços.

— Vai dormir, filho. Está tudo bem — menti-lhe, como tantas outras vezes.

Mas nunca esteve tudo bem. O Diogo cresceu num ambiente de tensão constante. Quando fez dezoito anos, saiu de casa para estudar Engenharia no Porto e nunca mais voltou a viver connosco. As chamadas tornaram-se raras, as visitas ainda mais. Eu tentava compensar enviando-lhe caixas com bolos caseiros e cartas escritas à mão, mas raramente recebia resposta.

Quando conheceu a Eva, pensei que as coisas iam melhorar. Ela parecia simpática nas primeiras vezes em que nos encontrámos — educada, reservada, mas com um sorriso doce. No entanto, rapidamente percebi que ela não gostava de mim. Talvez tenha sido por eu ser demasiado presente, ou por tentar dar conselhos sobre tudo: desde a decoração da casa deles até à forma como deviam educar a pequena Matilde, minha neta.

— Mãe, deixa-nos respirar — pediu-me o Diogo uma vez, já irritado.

— Só quero ajudar — respondi-lhe, sentindo-me injustiçada.

A Eva começou a afastar-se. As visitas passaram a ser cada vez mais curtas e formais. No Natal passado, nem sequer fui convidada para a ceia em casa deles. Passei a noite sozinha a olhar para as luzes da árvore e a recordar os Natais antigos, quando o Diogo era pequeno e acreditava no Pai Natal.

O Artur morreu há três anos. Não foi um choque — já estava doente há muito tempo — mas senti um vazio estranho quando fiquei sozinha naquela casa grande demais para mim. Pensei que talvez agora o Diogo se aproximasse mais, mas aconteceu o contrário. A Eva engravidou novamente e eu só soube pelo Facebook.

Tentei ligar-lhes várias vezes depois disso. Às vezes atendiam, outras vezes não. Quando atendiam, as conversas eram curtas e cheias de silêncios constrangedores.

— Está tudo bem convosco? — perguntava eu.

— Sim, mãe. Estamos ocupados — respondia o Diogo.

Até ao dia em que ele me disse para não ligar mais.

Passei semanas a tentar perceber onde errei. Falei com a minha irmã Teresa, que sempre foi mais sensata do que eu.

— Tu nunca soubeste pôr limites, Leonor — disse-me ela. — O Diogo precisa de espaço para ser feliz com a família dele.

— Mas eu só queria ajudar…

— Às vezes ajudar é saber sair de cena.

Essas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante noites inteiras em claro. Comecei a rever cada momento da minha vida: as discussões com o Artur, os gritos, as tentativas desesperadas de controlar tudo à minha volta para não sentir o caos dentro de mim. Percebi que tentei fazer do Diogo o centro da minha existência porque nunca consegui ser feliz com o Artur — e agora pago o preço dessa escolha.

Aproxima-se o meu aniversário de setenta anos e sei que vou passá-lo sozinha. A Matilde faz anos no mesmo mês e duvido que me convidem para a festa dela. Os vizinhos são simpáticos mas distantes; os amigos de outros tempos já partiram ou estão demasiado ocupados com os próprios netos.

Às vezes sento-me na varanda ao fim da tarde e vejo as famílias a passear no jardim em frente ao prédio. Ouço as gargalhadas das crianças e lembro-me do Diogo pequeno, correndo atrás dos pombos na Praça do Comércio. Pergunto-me se ele alguma vez pensa em mim com carinho ou se sou apenas uma sombra incómoda no passado dele.

Recebo mensagens da Teresa de vez em quando:

— Vem jantar cá a casa qualquer dia destes.

Mas sinto vergonha de aparecer lá com este peso no peito. Tenho medo dos olhares de pena dos outros familiares, das perguntas sobre o Diogo às quais não sei responder sem chorar.

No supermercado, cruzo-me com mães da minha idade que falam orgulhosas dos filhos e netos. Sorrio educadamente mas sinto uma inveja amarga crescer dentro de mim. Nunca pensei que fosse acabar assim: sozinha num apartamento cheio de fotografias antigas e silêncios pesados.

Se pudesse voltar atrás faria tudo diferente? Não sei. Talvez tivesse escolhido outro marido; talvez tivesse aprendido a amar-me antes de tentar amar os outros à força. Talvez tivesse dado ao Diogo aquilo que ele realmente precisava: paz e liberdade para ser ele próprio.

Agora resta-me esperar por uma mensagem no telemóvel que provavelmente nunca vai chegar. E perguntar-me todos os dias: será possível reconstruir uma ponte depois de tantos anos de silêncio? Ou será que há erros que simplesmente não têm perdão?

Se alguma mãe ler isto e sentir que está a repetir os meus passos… por favor, pense duas vezes antes de sufocar os filhos com amor mal entendido. Às vezes amar é saber deixar ir.

E tu? Já sentiste este vazio? Achas que ainda há tempo para recomeçar ou certas feridas nunca saram?