Sessenta Anos de Solidão: Quando o Amor Chega Tarde Demais?
— Não me venhas agora com histórias, Manuel! — gritou a minha irmã Teresa, batendo com força a chávena de café na mesa da cozinha. O som ecoou pela casa antiga dos meus pais, onde ainda moro, apesar dos meus sessenta anos. — Já não tens idade para essas aventuras! — continuou ela, os olhos faiscando de preocupação e desdém.
Fiquei calado, olhando para as mãos trémulas. O cheiro do café misturava-se com o da cera do chão, e por um momento desejei ser criança outra vez, quando tudo era mais simples e ninguém esperava nada de mim. Mas agora, depois de seis décadas de rotinas e silêncios, sentia-me como um estranho na minha própria vida.
Nunca casei. Nunca tive filhos. Os meus amigos de infância — o João, o Rui, o António — todos seguiram caminhos tradicionais: casaram cedo, tiveram filhos, construíram casas nos arredores de Lisboa. Eu fiquei. Fiquei com os meus livros, as minhas idas ao cinema do bairro, os jantares solitários no Café Nicola. A minha mãe dizia sempre: “O Manuel é diferente. Tem a cabeça nas nuvens.” Talvez tivesse razão.
Mas há seis meses tudo mudou. Conheci a Natália numa livraria do Chiado. Ela procurava um livro de Sophia de Mello Breyner; eu estava a folhear um romance do Saramago. Cruzámos olhares, trocámos sorrisos tímidos. Ela tinha 58 anos, cabelos grisalhos apanhados num coque desleixado e uma gargalhada que enchia a sala. Falámos durante horas sobre poesia, política, os filmes do Manoel de Oliveira. No final, trocámos números de telefone.
Desde então, a minha vida ganhou cor. Começámos a encontrar-nos todas as semanas: passeios à beira-Tejo, tardes nos museus, jantares improvisados em casa dela, onde me ensinou a fazer arroz de pato como a mãe dela fazia no Porto. Pela primeira vez em décadas, senti-me visto. Senti que podia ser mais do que o “tio solteirão” da família.
Mas nem todos ficaram felizes com esta mudança. A Teresa foi a primeira a mostrar desagrado. — Achas mesmo que é altura para começares uma relação? — perguntou-me um dia, enquanto arrumava as compras na despensa. — E se ela só quiser aproveitar-se de ti? Já viste a idade que tens? Não tens vergonha?
As palavras dela magoaram-me mais do que queria admitir. Sempre fui o irmão mais novo, o que ficou para trás para cuidar dos pais quando adoeceram, o que nunca fez ondas. Agora que finalmente ousava querer algo para mim, sentia-me julgado e ridicularizado.
O meu irmão mais velho, o Carlos, foi mais pragmático:
— Olha lá, Manuel… Se vais mesmo meter-te nisso, ao menos faz testamento. Não quero surpresas quando os nossos pais partirem.
Senti um nó na garganta. Era isto que pensavam de mim? Que eu era tão insignificante que só podia ser alvo de aproveitamento?
A Natália percebeu logo que algo não estava bem.
— Estás distante — disse ela uma noite, enquanto víamos o pôr-do-sol na varanda dela em Almada. — Tens medo do quê?
Olhei para ela e vi ternura nos olhos castanhos.
— Tenho medo de perder o pouco que tenho… E tenho medo de nunca ter tido nada.
Ela sorriu e pegou-me na mão.
— Nunca é tarde para começar.
Mas será mesmo?
Os meses passaram e a relação foi-se aprofundando. Comecei a dormir mais vezes em casa dela; ela trouxe-me livros antigos do pai para eu ler; fizemos planos para viajar até aos Açores no verão. Pela primeira vez em muitos anos, senti esperança.
No entanto, os conflitos familiares intensificaram-se. A Teresa deixou de me falar durante semanas. O Carlos enviava mensagens passivo-agressivas: “Não te esqueças da reunião com o advogado.” Até os meus sobrinhos começaram a olhar para mim como se fosse um estranho.
Uma noite, depois de um jantar animado com Natália e alguns amigos dela — pessoas cultas, divertidas, tão diferentes da minha família — voltei para casa dos meus pais e encontrei a Teresa à minha espera na sala escura.
— Estás a destruir tudo o que construímos juntos — disse ela em voz baixa. — Os pais sempre contaram contigo. Agora vais abandoná-los por uma mulher?
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— E eu? Quando é que alguém pensou em mim? Sempre fui o filho disponível, o irmão presente… Nunca tive direito a nada!
Ela chorou baixinho e eu saí porta fora sem olhar para trás.
Durante dias não consegui dormir. A culpa corroía-me por dentro: devia lealdade à família ou a mim próprio? Era justo finalmente escolher-me?
Contei tudo à Natália numa tarde chuvosa no Rossio.
— Não quero ser causa de discórdia — disse ela suavemente. — Mas também não quero ser segredo nem desculpa para infelicidade.
Abracei-a com força. Percebi então que tinha de tomar uma decisão: continuar prisioneiro das expectativas alheias ou arriscar ser feliz pela primeira vez.
Na semana seguinte, reuni coragem e sentei-me com Teresa e Carlos à mesa da cozinha.
— Vou mudar-me para casa da Natália — anunciei com voz firme. — Quero viver esta oportunidade enquanto posso.
O silêncio foi pesado como chumbo. Teresa chorou; Carlos abanou a cabeça em desaprovação. Mas pela primeira vez senti-me livre.
Hoje escrevo estas linhas sentado na varanda da Natália, com vista para o Tejo iluminado pelo sol poente. Sinto medo do futuro — claro que sim! Mas também sinto uma alegria serena por ter escolhido viver em vez de apenas existir.
Pergunto-me: quantos de nós passamos a vida inteira à espera da permissão dos outros para sermos felizes? E vocês… já tiveram coragem de escolher por vocês próprios?