Será que planeaste tudo, avó? – Uma história de segredos familiares e recomeços

— Achas mesmo que isto foi tudo planeado por ela? — perguntei, quase num sussurro, enquanto olhava para o retrato antigo da minha avó Maria, pousado sobre a cómoda do quarto onde cresci. O cheiro a madeira antiga e a roupa lavada misturava-se com o aroma doce do chá de tília que ela costumava preparar nas noites de inverno. A casa estava estranhamente silenciosa desde o funeral, como se todos os sons tivessem sido engolidos pelo luto.

A minha mãe, sentada na ponta da cama, passou os dedos pelo lenço preto que trazia ao pescoço. — A tua avó sempre teve um jeito especial para ver mais longe do que os outros. Mas ninguém pode prever tudo, filha.

Queria acreditar nela, mas não conseguia afastar a sensação de que a avó Maria tinha deixado pistas, pequenas armadilhas de ternura e mistério, para me obrigar a regressar. E foi precisamente isso que aconteceu: depois de descobrir a traição do Rui, o meu marido durante dez anos, não tive outro remédio senão voltar à casa onde fui feliz e infeliz em igual medida.

Na noite em que apanhei o Rui ao telefone com a outra — uma tal de Sílvia, colega do escritório — senti o chão fugir-me dos pés. O tom de voz dele, doce e cúmplice, era o mesmo que usava comigo nos primeiros tempos. Não gritei. Não chorei. Limitei-me a fechar a porta do quarto e a fazer as malas em silêncio. Quando ele chegou a casa, já eu estava sentada no sofá da sala com as malas feitas.

— Vais mesmo assim? — perguntou ele, incrédulo.

— Vou. E não me procures. — A minha voz saiu mais firme do que esperava.

A viagem de regresso ao Porto foi feita num silêncio pesado. O comboio parecia arrastar-se pelos trilhos como eu arrastava o coração pelo peito. Quando cheguei à estação de Campanhã, a minha mãe já me esperava com um abraço apertado e olhos vermelhos de tanto chorar pela mãe dela — e agora também por mim.

Os dias seguintes foram passados entre arrumações e silêncios. A casa da avó estava cheia de memórias: as fotografias antigas na parede da sala, as cartas guardadas numa caixa de lata, os bordados inacabados espalhados pela mesa da cozinha. Cada objeto parecia sussurrar um segredo.

Foi numa dessas tardes cinzentas que encontrei a primeira carta. Estava escondida dentro de um livro de receitas antigas, entre as páginas amarelecidas pelo tempo. O envelope trazia o meu nome escrito com a caligrafia firme da avó Maria.

“Minha querida Inês,

Se estás a ler isto é porque já não estou aí para te abraçar. Sei que a vida nem sempre é justa, mas quero que saibas que nunca estás sozinha. Há coisas sobre o nosso passado que precisam de ser conhecidas para poderes seguir em frente.”

O coração bateu-me descompassado. Continuei a ler, as mãos a tremer.

“A tua mãe nunca soube toda a verdade sobre o teu avô. Ele não morreu num acidente como lhe contaram. Foi embora porque não aguentava mais os segredos desta família. Procura no sótão, junto à arca azul.”

A carta terminava com um “Amo-te sempre” e uma assinatura tremida.

Durante dias hesitei em subir ao sótão. O medo do desconhecido misturava-se com uma curiosidade quase infantil. Até que numa noite de insónia, peguei numa lanterna e subi as escadas rangentes até ao sótão poeirento.

A arca azul estava lá, coberta por um velho cobertor de lã. Abri-a devagar e encontrei uma caixa de madeira fechada à chave. Procurei por toda a parte até encontrar uma pequena chave presa ao fundo da arca com fita adesiva.

Dentro da caixa estavam cartas antigas, fotografias e um diário do meu avô António. Li durante horas à luz fraca da lanterna. Descobri que ele tinha tido uma outra família antes de conhecer a minha avó — uma mulher espanhola chamada Carmen e um filho que nunca conheci.

O choque foi tão grande que quase deixei cair o diário ao chão. Senti raiva da avó por ter escondido tudo isto, mas também compaixão por ela ter carregado este peso sozinha durante tantos anos.

No dia seguinte, contei tudo à minha mãe. Ela ficou branca como a cal e chorou baixinho durante muito tempo.

— Porque é que ela nunca me contou? — perguntou-me entre soluços.

— Talvez tenha querido proteger-te — respondi, sem saber se acreditava nisso.

Os dias foram passando e comecei a sentir uma estranha liberdade. Pela primeira vez em muitos anos, não tinha ninguém a quem agradar senão a mim própria. Comecei a sair para passeios longos junto ao Douro, reencontrei velhos amigos do liceu e inscrevi-me num curso de cerâmica na Casa das Artes.

Foi lá que conheci o Miguel, um homem calmo e atento, com olhos tristes e mãos fortes marcadas pelo trabalho no campo. Começámos a conversar durante as aulas e rapidamente percebi que havia entre nós uma cumplicidade silenciosa.

Uma tarde, enquanto moldávamos barro lado a lado, ele perguntou:

— O que te trouxe de volta ao Porto?

Hesitei antes de responder:

— A morte da minha avó… e o fim do meu casamento.

Ele assentiu em silêncio, como se compreendesse cada palavra não dita.

As semanas passaram e fui-me sentindo cada vez mais viva. A relação com a minha mãe também começou a mudar. Pela primeira vez falámos abertamente sobre os nossos medos e mágoas. Descobrimos que ambas tínhamos passado anos a tentar ser perfeitas para agradar aos outros — ela à minha avó, eu ao Rui — sem nunca perguntarmos o que realmente queríamos para nós próprias.

Numa noite chuvosa de novembro, sentei-me no velho sofá da sala com a minha mãe ao lado e mostrei-lhe as cartas do avô António.

— Achas que devemos procurar essa outra família? — perguntei-lhe.

Ela ficou pensativa durante algum tempo antes de responder:

— Talvez seja altura de fechar este ciclo. Deixar de viver à sombra dos segredos dos outros.

No dia seguinte escrevi uma carta para um endereço em Vigo encontrado entre os papéis do avô. Duas semanas depois recebi resposta: uma mulher chamada Teresa apresentou-se como minha tia e convidou-nos a ir conhecê-la.

A viagem foi feita num misto de ansiedade e esperança. Quando chegámos à pequena aldeia galega onde Teresa vivia, fomos recebidas com abraços tímidos mas sinceros. Descobri primos que nunca imaginei ter e histórias que completaram as peças soltas do meu passado.

Regressei ao Porto com o coração mais leve e uma nova certeza: não somos apenas feitos do sangue dos nossos pais ou dos segredos dos nossos avós — somos também aquilo que escolhemos fazer com as verdades que descobrimos.

Hoje olho para trás e pergunto-me: teria eu tido coragem de mudar se não fosse tudo isto? Ou será que foi mesmo a avó Maria quem planeou cada passo deste meu recomeço?

E vocês? Acham que somos donos do nosso destino ou apenas peças num jogo maior desenhado por quem veio antes de nós?