Sentir-me Estranha na Casa da Minha Filha: Uma História de Silêncios e Reencontros

— Mãe, não mexas aí, por favor. — A voz da Inês ecoou da cozinha, seca, quase impaciente. Eu tinha acabado de abrir o armário à procura de uma chávena para o meu chá, mas parece que até isso era um erro.

Fiquei parada, com a mão suspensa no ar, sentindo-me de repente uma intrusa na casa da minha própria filha. Como é possível sentir-me tão deslocada aqui? Passei a vida inteira a cuidar dela, a garantir que nunca lhe faltava nada. Agora, aos 68 anos, depois de vender a nossa velha casa em Setúbal porque já não conseguia subir as escadas, vim viver com ela para Lisboa. Achei que seria um recomeço. Mas cada dia parece mais um fim.

Sentei-me à mesa da sala, olhando para as fotografias nas prateleiras — quase todas da Inês com o marido, o Pedro, e os meus netos, o Tomás e a Leonor. Eu aparecia numa ou noutra, sempre ao fundo, quase como um detalhe esquecido. Oiço risos vindos do quarto das crianças e sinto uma pontada de saudade do tempo em que a casa era minha, cheia de barulho, cheiros e vida.

— Mãe, está tudo bem? — A Inês apareceu à porta, com o avental ainda atado à cintura.

— Está, filha. Só estava a pensar…

Ela sorriu, mas era um sorriso apressado, daqueles que se dão por obrigação. — O jantar está quase pronto. Podes pôr a mesa?

Levantei-me devagar. A cada passo sentia o peso do silêncio entre nós. Quando me mudei para cá há três meses, prometi a mim mesma não ser um fardo. Mas como é que se vive sem incomodar quando tudo o que faço parece errado?

No início tentei ajudar: lavava a roupa das crianças, arrumava a cozinha, até fiz um cozido à portuguesa como ela gostava. Mas percebi logo que estava a invadir o espaço dela. O Pedro começou a chegar mais tarde do trabalho. A Inês suspirava cada vez que eu sugeria alguma coisa diferente.

— Mãe, aqui fazemos as coisas de outra maneira — disse-me ela um dia, depois de eu ter reorganizado a despensa. — Não leves a mal…

Levei. Claro que levei. Mas calei-me.

Hoje, enquanto ponho os pratos na mesa, ouço as vozes baixas do casal na cozinha.

— Ela mexe em tudo… — sussurra o Pedro.

— Tem calma. É só uma fase — responde a Inês.

Uma fase? Serei eu apenas uma fase incómoda na vida deles?

Ao jantar, os miúdos falam animados sobre a escola. Eu sorrio e faço perguntas, mas percebo que as respostas são curtas. Sinto-me como uma convidada num jantar formal, onde todos têm medo de dizer algo errado.

Depois do jantar, recolho os pratos e lavo-os em silêncio. A Inês aparece atrás de mim.

— Mãe, não precisas de fazer isso…

— Eu sei — respondo baixinho. Mas se não fizer nada, sinto-me ainda mais inútil.

No meu quarto — pequeno demais para todas as minhas memórias — olho para as caixas ainda por desfazer. Fotografias do meu António, falecido há cinco anos; cartas antigas; um lenço bordado pela minha mãe. Tudo guardado porque aqui não há espaço para o passado.

Naquela noite não durmo. Oiço o relógio da sala bater as horas e penso em tudo o que perdi: a casa onde vivi quarenta anos; os vizinhos que me conheciam pelo nome; o cheiro do pão quente da padaria ao fundo da rua; os serões à janela com o António.

De manhã cedo, decido sair para apanhar ar. Caminho até ao jardim do bairro e sento-me num banco ao sol. Uma senhora idosa aproxima-se e senta-se ao meu lado.

— Também veio fugir um bocadinho de casa? — pergunta ela com um sorriso cúmplice.

— Talvez… — respondo.

Ela ri-se. — Eu também moro com a minha filha. Às vezes sinto-me como uma hóspede indesejada.

Olho para ela surpresa. Não sou só eu?

— Sabia que há um centro de convívio aqui perto? — continua ela. — Às terças jogamos cartas e às quintas fazemos caminhadas.

Agradeço-lhe e volto para casa com uma ideia nova: talvez precise de encontrar o meu próprio espaço dentro desta nova vida.

Quando chego, a Inês está à porta à minha espera.

— Estava preocupada! Onde foste?

— Só fui dar uma volta — digo-lhe suavemente.

Ela suspira aliviada e convida-me para tomar chá com ela na varanda. Sentamo-nos em silêncio durante algum tempo até que ela fala:

— Desculpa se às vezes pareço distante… Não é fácil para mim também.

Olho para ela e vejo não só a minha filha mas também uma mulher cansada, dividida entre ser mãe dos filhos e filha da mãe.

— Eu sei, filha. Também estou a tentar adaptar-me.

Ela pega na minha mão e sorri pela primeira vez em semanas.

— Podemos tentar juntas?

Nesse momento percebo que talvez nunca volte a sentir-me completamente em casa aqui. Mas talvez possamos construir algo novo — um espaço onde ambas sejamos mais do que hóspedes na vida uma da outra.

À noite escrevo no meu diário: “O que significa realmente sentir-se em casa? Será possível encontrar pertença num lugar novo ou será que carregamos sempre connosco essa sensação de estranheza? E vocês, já se sentiram assim? Como encontraram o vosso lugar?”