Sempre Serei a Culpada? – A Sombra de Uma Família Portuguesa
— Não mintas para mim, Mariana! — gritou o meu pai, com os olhos vermelhos de raiva e cansaço. O cheiro do café frio misturava-se com o fumo do cigarro que ele esmagava nervosamente no cinzeiro. Eu, de pé junto à porta da cozinha, sentia as pernas tremerem. O silêncio da minha mãe era ainda mais cortante do que os gritos dele.
— Pai, eu juro… — tentei começar, mas a minha voz falhou. Ele virou-me as costas, murmurando qualquer coisa sobre vergonha e desilusão. A minha mãe continuava a olhar para o chão, as mãos apertadas no avental.
Naquela noite, tudo mudou. Bastou um boato, uma palavra maldosa sussurrada na taberna da aldeia. Diziam que eu tinha sido vista com o Rui, o filho do senhor António, junto ao moinho velho. Diziam que eu tinha feito coisas que uma rapariga decente nunca faria. E ninguém quis saber se era verdade ou não. Bastou a dúvida para me condenarem.
Lembro-me de correr pela rua de terra batida, os olhos das vizinhas cravados em mim como agulhas. Oiço ainda hoje os risos abafados, os cochichos atrás das cortinas. A minha irmã mais nova, Inês, deixou de falar comigo. O meu irmão mais velho, Tiago, fingia que eu não existia. Só a minha avó me olhava nos olhos, mas até ela parecia cansada.
— Mariana, às vezes é melhor calar do que lutar — disse-me ela uma tarde, enquanto descascava batatas. — O povo esquece depressa.
Mas não esqueceram. Passaram-se meses e eu continuava a ser a rapariga “fácil”, a vergonha da família Silva. O Rui nunca disse nada. Nem uma palavra para me defender. E eu, sozinha, tentava continuar a ir à escola, a ajudar em casa, a fingir que nada tinha mudado.
Uma noite ouvi os meus pais a discutir no quarto ao lado.
— Não podemos continuar assim! — dizia a minha mãe, quase a chorar. — A Mariana não é má rapariga!
— Não me interessa! — respondeu o meu pai. — Enquanto ela aqui estiver, ninguém nos respeita.
A partir desse dia comecei a pensar em fugir. Mas para onde iria eu? Tinha dezassete anos e nenhum dinheiro. O meu mundo era aquela aldeia pequena e cruel.
O tempo passou e aprendi a viver com o desprezo. Trabalhei no café da dona Rosa, onde as clientes me olhavam de lado e falavam baixo quando eu passava. Um dia, a dona Rosa chamou-me à cozinha.
— Mariana, tu és boa rapariga — disse ela, limpando as mãos ao avental. — Mas sabes como é… as pessoas falam. Não posso perder clientes por tua causa.
Fui despedida sem cerimónia. Voltei para casa de cabeça baixa e encontrei a minha mãe à porta.
— O que aconteceu? — perguntou ela.
— Nada — respondi, sem coragem de lhe contar mais uma humilhação.
Nessa noite chorei sozinha no quarto. Perguntei-me porque é que ninguém acreditava em mim. Porque é que bastava um boato para destruir uma vida inteira.
No verão seguinte, o Rui foi apanhado a roubar no armazém do senhor António. De repente, todos se esqueceram do que diziam sobre mim. Agora era ele o alvo dos cochichos e dos olhares reprovadores. Mas ninguém lhe virou as costas como fizeram comigo. O Rui era rapaz, podia errar e ser perdoado.
A injustiça revolveu-se dentro de mim como um veneno lento. Comecei a responder torto aos meus pais, a sair de casa sem avisar. Um dia cheguei tarde e encontrei o meu pai à minha espera na sala.
— Achas que és dona do teu nariz? — perguntou ele, com voz fria.
— Já não tenho nada a perder — respondi eu, olhando-o nos olhos pela primeira vez em meses.
Ele levantou a mão como se me fosse bater, mas parou a meio caminho. Ficámos ali parados, presos num silêncio pesado.
No dia seguinte decidi ir embora. Arrumei umas roupas numa mochila velha e saí antes do sol nascer. Caminhei até à estação de comboios na vila vizinha e comprei um bilhete para Lisboa com o pouco dinheiro que tinha guardado.
Lisboa era um mundo novo e assustador. Dormi duas noites na estação de Santa Apolónia até encontrar trabalho numa pastelaria pequena em Alfama. A dona Lurdes deu-me cama e comida em troca de trabalho duro e silêncio sobre o meu passado.
Durante meses vivi assim: acordava cedo, limpava mesas, servia cafés e fingia que era outra pessoa. Às vezes sonhava com a minha família, com a casa onde cresci, com o cheiro das laranjeiras no quintal. Mas acordava sempre sozinha.
Um dia recebi uma carta da Inês. Dizia apenas:
“Desculpa por tudo. Tenho saudades tuas.”
Chorei como há muito não chorava. Respondi-lhe com poucas palavras: “Também tenho saudades.” Mas não voltei atrás.
Os anos passaram e fui construindo uma nova vida em Lisboa. Conheci o Miguel na pastelaria; ele era cliente habitual e gostava de conversar sobre livros e música fado. Apaixonámo-nos devagarinho, como quem tem medo de se magoar outra vez.
Quando contei ao Miguel o que tinha acontecido na aldeia, ele ficou em silêncio durante muito tempo.
— Mariana… tu não tens culpa de nada — disse ele finalmente, apertando-me as mãos entre as dele.
Foi a primeira vez que alguém acreditou verdadeiramente em mim desde aquela noite fatídica.
Casámo-nos num verão quente e simples, rodeados por poucos amigos e pela Inês, que veio de propósito da aldeia só para me ver feliz. Os meus pais não vieram; nunca mais lhes falei desde o dia em que parti.
Hoje tenho dois filhos pequenos e uma vida cheia de trabalho e amor em Lisboa. Mas às vezes ainda acordo sobressaltada com pesadelos do passado: os gritos do meu pai, o silêncio da minha mãe, os olhares das vizinhas.
Pergunto-me se algum dia serei realmente livre daquela sombra antiga ou se terei sempre de provar quem sou e o que valho.
Será possível perdoar quem nos vira as costas? Ou será que há feridas que nunca saram? E vocês… já sentiram o peso de uma culpa injusta?