Sempre o Ombro Amigo: Quando Percebi Que Também Preciso de Mim

“Não agora, Leonor, estamos a falar de coisas sérias.” A voz do meu marido, Ricardo, cortou o ar da sala como uma faca. Senti o rosto arder, não só pela humilhação de ser interrompida à frente da minha sogra, mas porque aquela frase era um eco de tantas outras vezes em que fui silenciada. Olhei para a mesa, para as chávenas de café meio vazias e para as mãos entrelaçadas no colo. Era sempre assim: eu era o pano de fundo das conversas importantes, a que servia bolos e ouvia os desabafos, mas nunca a protagonista.

Desde pequena, sempre fui a “boazinha”. A minha mãe dizia: “Leonor, tu tens um coração de ouro.” E eu acreditava. Era a irmã que acalmava os ânimos quando o meu irmão mais novo fazia birra, a filha que nunca levantava a voz, a amiga que ficava acordada até às três da manhã a ouvir os dramas amorosos da Inês. Cresci a pensar que o meu valor estava em ser útil aos outros, em ser o ombro amigo, o porto seguro. Mas ninguém me ensinou a ser o meu próprio abrigo.

Quando conheci o Ricardo, ele parecia diferente. Tinha um sorriso fácil e um olhar atento. No início, fazia-me sentir especial. “Gosto tanto da tua calma”, dizia-me. “És o equilíbrio que me falta.” E eu sentia-me vista, finalmente. Mas com o tempo percebi que ele não queria partilhar o peso da vida; queria alguém que o carregasse por ele. As conversas passaram a ser monólogos sobre os problemas dele no trabalho, as discussões com o pai, as dúvidas sobre o futuro. Eu ouvia, aconselhava, abraçava. E quando tentava falar sobre mim, sobre os meus medos ou sonhos, ele mudava de assunto ou dizia: “Não compliques.”

A rotina instalou-se como uma névoa espessa. Os dias eram todos iguais: acordar cedo, preparar o pequeno-almoço para todos, sair para o trabalho (onde também era a colega que resolvia conflitos e fazia favores), voltar para casa, fazer jantar, ouvir as queixas do Ricardo e da sogra (que morava connosco desde que ficou viúva). Às vezes sentia-me uma sombra na minha própria vida.

Lembro-me de uma noite em particular. Estava sentada na varanda, já tarde, com uma manta sobre os ombros. Oiço passos atrás de mim — era a minha filha, Matilde, com os olhos inchados de chorar.

— Mãe… posso falar contigo?

Assenti e ela sentou-se ao meu lado.

— O pai gritou comigo outra vez. Disse que eu sou ingrata… — A voz dela tremia.

Abracei-a com força.

— Não ligues ao que ele diz quando está nervoso. Tu és maravilhosa, Matilde.

Ela encostou-se ao meu ombro e ficou em silêncio. Senti um nó na garganta. Era sempre assim: eu era o consolo de todos, mas quem me consolava a mim?

No trabalho, a situação não era diferente. A minha chefe, Dona Teresa, confiava-me sempre as tarefas mais delicadas. “Leonor, só tu consegues lidar com este cliente difícil.” Ou então: “Podes ficar mais um bocadinho? Preciso mesmo de ti.” E eu ficava. Sempre ficava. Mesmo quando tudo em mim gritava por descanso.

Os anos passaram e fui ficando cada vez mais cansada. Comecei a ter insónias, dores no peito, crises de ansiedade. Fui ao médico e ele disse: “Precisa de cuidar mais de si.” Sorri e agradeci — mas como é que se cuida de alguém que nem sabe quem é sem os outros?

A gota de água foi no aniversário da Matilde. Organizei tudo sozinha: convites, bolo, decoração. No final da festa, enquanto arrumava a cozinha cheia de pratos sujos e balões murchos, ouvi Ricardo dizer à sogra:

— A Leonor tem jeito para estas coisas… mas às vezes parece que vive noutro mundo.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Fui até à sala e disse:

— Sabes o que é viver noutro mundo? É sentir que ninguém repara em ti a não ser quando precisam de alguma coisa.

O silêncio caiu como uma pedra. Ricardo olhou para mim como se eu tivesse enlouquecido.

— O que é que se passa contigo? Estás cansada? — perguntou ele num tom quase paternalista.

— Estou exausta! — gritei. — Estou farta de ser sempre o apoio dos outros e nunca ter ninguém para me apoiar!

A sogra levantou-se devagar.

— Leonor… não sabia que te sentias assim.

— Pois não — respondi — porque ninguém pergunta.

Saí da sala antes que as lágrimas me traíssem. Fechei-me na casa de banho e olhei-me ao espelho. Quem era aquela mulher com olheiras fundas e olhos tristes? Onde estava a Leonor cheia de sonhos?

Nessa noite não dormi. Fiquei a pensar em tudo o que tinha deixado para trás: os cursos de pintura que nunca fiz, as viagens adiadas, os livros por ler. Lembrei-me do convite da Inês para irmos passar um fim-de-semana ao Gerês — convite esse que recusei porque “não podia deixar a família sozinha”.

No dia seguinte tomei uma decisão: ia começar a dizer mais vezes “não”. Ia cuidar de mim como cuido dos outros.

Comecei devagarinho: recusei ficar até mais tarde no trabalho; pedi ao Ricardo para fazer o jantar duas vezes por semana; inscrevi-me num curso de pintura à noite. No início foi difícil — sentia-me egoísta, culpada até. Mas depois comecei a sentir algo novo: liberdade.

A Matilde notou logo a diferença.

— Mãe… estás diferente.

Sorri-lhe.

— Estou só a aprender a gostar mais de mim.

O Ricardo resistiu no início — resmungou, fez birra, tentou manipular-me com silêncios prolongados. Mas eu mantive-me firme. Pela primeira vez na vida pus-me em primeiro lugar.

Hoje olho para trás e vejo quanto tempo perdi a tentar agradar aos outros enquanto me esquecia de mim própria. Ainda sou amiga, mãe e esposa — mas agora também sou Leonor: mulher com sonhos e vontades próprias.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem assim? Quantas Leonores existem por aí? E vocês… já se sentiram invisíveis na vossa própria vida?