Sempre Fui Mãe: Quando o Amor se Torna Silêncio

— Mãe, por favor, não te metas. Já não somos crianças! — A voz da Mariana ecoou pelo corredor, cortando o silêncio da casa como uma navalha. Fiquei parada, com a mão ainda pousada na maçaneta da porta do quarto dela. O cheiro a café acabado de fazer misturava-se com o perfume doce da adolescência que já não mora ali há anos. Senti o peito apertar, como se cada palavra dela fosse um prego a cravar-se no meu coração.

Sempre fui mãe. Não só no sentido biológico, mas em cada minuto, em cada gesto, em cada sonho adiado. Quando o Pedro e a Mariana eram pequenos, tudo girava à volta deles: as idas ao centro de saúde, as reuniões na escola, as noites em claro à cabeceira da cama quando a febre teimava em não baixar. O António, meu marido, sempre dizia: “Deixa-os crescer, Rosa. Não podes viver só para eles.” Mas como não viver? Como desligar esse instinto que me fazia acordar ao menor suspiro deles?

Lembro-me de uma noite de inverno, há muitos anos. O Pedro tinha caído e aberto o queixo no recreio. Chovia torrencialmente e eu corri pela rua abaixo, sem guarda-chuva, só para chegar mais depressa à escola. Cheguei encharcada, mas ele sorriu ao ver-me. “A mãe veio!” — disse ele, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. E era. Para mim, era.

A vida foi passando e fui adiando sonhos. Queria ter acabado o curso de enfermagem, mas depois veio a gravidez da Mariana e depois o Pedro ficou doente e depois… depois nunca mais houve tempo para mim. Não me arrependo. Ou pelo menos sempre disse a mim mesma que não me arrependo.

O António reformou-se cedo demais e ficou amargo. Passava os dias a ver televisão ou a resmungar com tudo e todos. Eu tentava manter a casa viva: cozinhava os pratos preferidos dos miúdos, fazia bolos ao domingo, organizava festas de aniversário com balões e caça ao tesouro. Os vizinhos diziam: “A Rosa é uma mãe de mão cheia.” E eu sorria, orgulhosa.

Mas agora… agora a casa está vazia. O Pedro foi para Lisboa trabalhar numa consultora qualquer — só vem cá ao Natal e mesmo assim passa metade do tempo ao telemóvel. A Mariana casou-se com o Rui e mora a vinte minutos daqui, mas parece que vive noutro planeta. Quando ligo para saber se precisa de alguma coisa, responde sempre apressada: “Está tudo bem, mãe. Depois ligo eu.” Mas raramente liga.

No outro dia tentei dar um conselho à Mariana sobre o pequeno Tomás — o meu neto — porque reparei que ele anda muito agitado. Ela olhou-me com aquele ar cansado e disse: “Mãe, cada geração tem as suas maneiras. Não te preocupes tanto.” Senti-me inútil. Como se todo o saber acumulado em anos de noites mal dormidas e preocupações fosse agora lixo velho.

O António já não está cá para me dizer que estou a exagerar. Partiu há dois anos, silencioso como sempre viveu nos últimos tempos. Sinto falta dele até nas discussões — pelo menos nessas alturas sentia-me vista.

Às vezes sento-me na varanda a olhar para a rua deserta da aldeia. Vejo as vizinhas mais novas a correr atrás dos filhos pequenos e lembro-me de mim mesma há vinte anos. Sinto uma saudade tão funda que quase me afogo nela.

No Natal passado tentei juntar toda a família cá em casa. Fiz rabanadas, polvo à lagareiro, arroz doce com canela em forma de coração — como eles gostavam quando eram pequenos. O Pedro chegou atrasado e saiu cedo porque “tinha um compromisso”. A Mariana passou metade do tempo a discutir com o Rui sobre quem ia buscar o Tomás à casa dos sogros.

Depois do jantar sentei-me sozinha na cozinha a olhar para os pratos sujos. Ouvi-os rir na sala e por um momento quase fui lá juntar-me a eles. Mas fiquei ali, imóvel, como se tivesse medo de estragar aquele momento raro de harmonia.

Na semana seguinte liguei à Mariana para lhe perguntar se queria que ficasse com o Tomás um fim de semana qualquer — só para ela descansar um pouco. Ela respondeu: “Mãe, agradeço mas já temos tudo organizado.” E desligou apressada.

Sinto-me como uma peça de mobília antiga: já fui útil, agora só atrapalho.

No outro dia encontrei a Dona Lurdes no café da vila. Ela também tem filhos crescidos e netos que raramente vê. Contou-me que às vezes inventa doenças só para os filhos lhe ligarem ou irem lá a casa ver se está tudo bem. Ri-me com ela, mas por dentro chorei.

Será isto o destino das mães portuguesas? Damos tudo — tempo, sonhos, juventude — e depois ficamos à espera de migalhas de atenção?

Lembro-me do dia em que a Mariana fez 18 anos e quis sair sozinha pela primeira vez à noite. Fiquei acordada até às três da manhã à espera dela, com o coração aos pulos sempre que ouvia um carro na rua. Quando entrou em casa olhou para mim e disse: “Mãe, tens de confiar mais em mim.” E eu tentei confiar. Mas nunca deixei de me preocupar.

Agora dizem-me: “Não te metas.” Como se eu pudesse desligar esse interruptor dentro de mim.

Às vezes penso em voltar a estudar ou inscrever-me num curso de pintura na junta de freguesia. Mas depois lembro-me que ninguém vai reparar se eu pintar quadros ou tirar boas notas. Ninguém vai dizer: “A mãe veio!”

Esta semana fiz anos. O Pedro mandou uma mensagem pelo WhatsApp: “Parabéns mãe! Beijinhos.” A Mariana ligou ao fim do dia: “Desculpa mãe, foi um dia complicado.” O Tomás cantou-me os parabéns pelo telefone — foi o único momento em que sorri de verdade.

À noite sentei-me na cama e chorei baixinho para não assustar ninguém — como fazia quando eles eram pequenos e eu não podia mostrar fraqueza.

Será que errei? Será que devia ter pensado mais em mim? Ou será que ser mãe é mesmo isto: dar tudo sem esperar nada em troca?

Se pudesse voltar atrás… faria tudo igual? Ou tentaria encontrar um equilíbrio entre ser mãe e ser mulher?

E vocês? Acham que uma mãe pode alguma vez deixar de ser mãe? Ou será que estamos condenadas ao silêncio quando já não precisam de nós?